© Alessandro Loiola
Durante a cirurgia, entre a cauterização de um vaso e outro:
- Como assim, você vai mudar de novo?
- Sim, vou pra São José dos Campos. Pinça.
- Fica em São Paulo não é?
- Humrum. Uns 100 km da capital. Corta aqui. Isso. Pinça de novo.
Beleza.
- Mas de onde diabos você tirou essa ideia? Parece que tem rodinhas nos
pés, meu Deus...
- Vou te contar...
Estava em Belo Horizonte há 8 anos, mas esse sangue nômade corria na família
há muito mais tempo. Até onde me lembro, Vô Antônio foi meu ancestral mais
próximo dessa linhagem de homens-de-rodinhas. Certamente havia outros. E
outras. Ter rodinhas é apenas uma de tantas características de nossa espécie
que insistimos em sufocar.
Calcula-se que o Homo sapiens venha caminhando por este pequeno planeta
esquecido nos subúrbios da Via Láctea há pouco mais de 300 mil anos. Faça
aí suas contas. Três mil séculos. Quase nada. Os Dinos comandaram a festa por
um milhão e meio de séculos e ainda tem muita tartaruga e jacaré por aí. Somos
calouros nesse papo de “dominar o mundo”.
Destes 300 mil anos, fomos nômades até o Neolítico (10.000 a.C.). E
então descobrimos a agricultura, e pudemos sentar nossas nádegas em um pedaço
de terra e chamar aquilo de “casa”. Quando isso aconteceu, nossos genes já traziam
um imprint nômade de 290 mil giros em torno do sol.
Finalmente, 300 anos atrás, inventamos uma tal de Revolução Industrial. E isso
deu ao pai do avô do avô do avô do avô do seu avô um emprego, essa herança
maravilhosa que perseguimos até hoje com cursinhos pré-vestibulares e apostilas
de concursos públicos.
Máquina
Imagine o que você é de verdade. Você é uma máquina, saca? Simplesmente
uma das máquinas predadoras mais eficazes e extraordinárias que a natureza foi
capaz de produzir. Duvida? Então olha só:
Considere o conflito: homem versus leão faminto. Para a briga, permita
que o Panthera leo de 2,5 m de comprimento e pesando
modestos 250 kg de músculos e fúria utilize todas as armas que a natureza lhe
deu. A consequência? Um homem fatiado feito 400 gramas de acém moído.
Agora permita a mesma liberdade de ação ao mamífero bípede. Dessa vez,
deixe que o Humano utilize todas as armas que a natureza lhe deu. A
consequência? O leão vira uma espécie ameaçada de extinção. Uma bombinha de
nada e matamos o leão, uma manada de elefantes, mil zebras e de quebra fechamos
a reserva inteira por 50 anos devido contaminação radioativa.
Isso é eficácia ou o quê, hein? Hein? Toca aqui.
Pois você teria coragem de, ao final do seu looongo e exaustivo dia de
trabalho, trancar a porta, sentar em casa em frente à TV e colocar ao seu lado
um leão faminto? Se você acha isso loucura, como tem coragem de sentar-se dentro
de um ser humano enfastiado? O que você acha que esse animal irá fazer com
você? O que você acha que seu corpo insatisfeito irá fazer com você? Preparar
um toddy?
Eu te respondo: vira e mexe, o animal humano que vive dentro de você irá
lhe dar uma lanhada. Ele irá se arremessar contra você em um rompante de unhas,
dentes, angústia, depressão, arritmia, hipertensão arterial, insônia, compulsão
alimentar, obesidade, diabetes, etc. É o animal lhe devorando. Afinal, você não
cuida dele, chega em casa lamuriando que “hoje o dia acabou comigo!” e fecha a
porta... O coitado não tem alternativa exceto abrir a boca e morder seu
tornozelo com toda força.
Vida sedentária?
Lembre-se: se nossa evolução neste planeta pudesse ser contada no
período das 24h de um dia, cada minuto corresponderia a cerca de 200 anos.
Durante as primeiras 23 horas, o corpo que você tá usando aí agora foi sendo
selecionado e polido para perambular uma vida nômade. Somente nos últimos 60
segundos esse mesmo corpo passou a ser obrigado a usar uma cadeira e uma mesa
8h por dia, 40h por semana.
Seu corpo não foi programado para isso, seu habitat não é o ambiente
laboral. Ele não foi criado para esse modo civilizatório. A sociedade que
criamos está adiante da natureza do corpo que ocupamos, e essa dissonância está
acabando conosco.
Como não tem como desfazer a Revolução Industrial ou criar uma máquina
do tempo para destruir as enxadinhas de todas as tribos do Neolítico, o jeito é
aprender a lidar com o corpo. Treiná-lo, condicioná-lo, agradá-lo com passeios,
natureza, esportes, música, sexo, para que ele se torne um cachorro manso e obediente, ao
invés de uma fera esperando para lhe engolir.
Tenho lidado com exemplares de nossa espécie há algum tempo. Depois do
espécime número 275.000, acho que consegui aprender alguma coisa: cada pessoa
tem uma história, uma realidade, mas basicamente ocupamos corpos que funcionam
do mesmo modo há milênios.
É possível extrair mais do seu corpo do que jamais imaginou – tudo que você
precisa é ter a mente aberta, um pouco de inteligência e alguns gramas de
disciplina. Não é tão difícil. Mas se não quiser, faça um favor: não venha
aparecer no meu plantão para reclamar das mordidas.
Do começo ao fim, a responsabilidade pelo animal é sua. E sempre será.
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