01 março 2016

O Animal Humano





© Alessandro Loiola




Durante a cirurgia, entre a cauterização de um vaso e outro: 
- Como assim, você vai mudar de novo?
- Sim, vou pra São José dos Campos. Pinça.
- Fica em São Paulo não é?
- Humrum. Uns 100 km da capital. Corta aqui. Isso. Pinça de novo. Beleza.
- Mas de onde diabos você tirou essa ideia? Parece que tem rodinhas nos pés, meu Deus...
- Vou te contar... 

Estava em Belo Horizonte há 8 anos, mas esse sangue nômade corria na família há muito mais tempo. Até onde me lembro, Vô Antônio foi meu ancestral mais próximo dessa linhagem de homens-de-rodinhas. Certamente havia outros. E outras. Ter rodinhas é apenas uma de tantas características de nossa espécie que insistimos em sufocar. 

Calcula-se que o Homo sapiens venha caminhando por este pequeno planeta esquecido nos subúrbios da Via Láctea há pouco mais de 300 mil anos. Faça aí suas contas. Três mil séculos. Quase nada. Os Dinos comandaram a festa por um milhão e meio de séculos e ainda tem muita tartaruga e jacaré por aí. Somos calouros nesse papo de “dominar o mundo”.
 
Destes 300 mil anos, fomos nômades até o Neolítico (10.000 a.C.). E então descobrimos a agricultura, e pudemos sentar nossas nádegas em um pedaço de terra e chamar aquilo de “casa”. Quando isso aconteceu, nossos genes já traziam um imprint nômade de 290 mil giros em torno do sol.

Finalmente, 300 anos atrás, inventamos uma tal de Revolução Industrial. E isso deu ao pai do avô do avô do avô do avô do seu avô um emprego, essa herança maravilhosa que perseguimos até hoje com cursinhos pré-vestibulares e apostilas de concursos públicos.

 
Máquina 

Imagine o que você é de verdade. Você é uma máquina, saca? Simplesmente uma das máquinas predadoras mais eficazes e extraordinárias que a natureza foi capaz de produzir. Duvida? Então olha só: 

Considere o conflito: homem versus leão faminto. Para a briga, permita que o Panthera leo de 2,5 m de comprimento e pesando modestos 250 kg de músculos e fúria utilize todas as armas que a natureza lhe deu. A consequência? Um homem fatiado feito 400 gramas de acém moído. 

Agora permita a mesma liberdade de ação ao mamífero bípede. Dessa vez, deixe que o Humano utilize todas as armas que a natureza lhe deu. A consequência? O leão vira uma espécie ameaçada de extinção. Uma bombinha de nada e matamos o leão, uma manada de elefantes, mil zebras e de quebra fechamos a reserva inteira por 50 anos devido contaminação radioativa.

Isso é eficácia ou o quê, hein? Hein? Toca aqui. 

Pois você teria coragem de, ao final do seu looongo e exaustivo dia de trabalho, trancar a porta, sentar em casa em frente à TV e colocar ao seu lado um leão faminto? Se você acha isso loucura, como tem coragem de sentar-se dentro de um ser humano enfastiado? O que você acha que esse animal irá fazer com você? O que você acha que seu corpo insatisfeito irá fazer com você? Preparar um toddy?

Eu te respondo: vira e mexe, o animal humano que vive dentro de você irá lhe dar uma lanhada. Ele irá se arremessar contra você em um rompante de unhas, dentes, angústia, depressão, arritmia, hipertensão arterial, insônia, compulsão alimentar, obesidade, diabetes, etc. É o animal lhe devorando. Afinal, você não cuida dele, chega em casa lamuriando que “hoje o dia acabou comigo!” e fecha a porta... O coitado não tem alternativa exceto abrir a boca e morder seu tornozelo com toda força. 


Vida sedentária? 

Lembre-se: se nossa evolução neste planeta pudesse ser contada no período das 24h de um dia, cada minuto corresponderia a cerca de 200 anos. Durante as primeiras 23 horas, o corpo que você tá usando aí agora foi sendo selecionado e polido para perambular uma vida nômade. Somente nos últimos 60 segundos esse mesmo corpo passou a ser obrigado a usar uma cadeira e uma mesa 8h por dia, 40h por semana.
  
Seu corpo não foi programado para isso, seu habitat não é o ambiente laboral. Ele não foi criado para esse modo civilizatório. A sociedade que criamos está adiante da natureza do corpo que ocupamos, e essa dissonância está acabando conosco. 

Como não tem como desfazer a Revolução Industrial ou criar uma máquina do tempo para destruir as enxadinhas de todas as tribos do Neolítico, o jeito é aprender a lidar com o corpo. Treiná-lo, condicioná-lo, agradá-lo com passeios, natureza, esportes, música, sexo, para que ele se torne um cachorro manso e obediente, ao invés de uma fera esperando para lhe engolir. 

Tenho lidado com exemplares de nossa espécie há algum tempo. Depois do espécime número 275.000, acho que consegui aprender alguma coisa: cada pessoa tem uma história, uma realidade, mas basicamente ocupamos corpos que funcionam do mesmo modo há milênios.

É possível extrair mais do seu corpo do que jamais imaginou – tudo que você precisa é ter a mente aberta, um pouco de inteligência e alguns gramas de disciplina. Não é tão difícil. Mas se não quiser, faça um favor: não venha aparecer no meu plantão para reclamar das mordidas.

Do começo ao fim, a responsabilidade pelo animal é sua. E sempre será.

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