23 agosto 2018

A ANTIGA LIÇÃO DE PARKINSON PARA O BRASIL DE HOJE

Em “The Law of a Longer Life” (A Lei de uma Vida Mais Longa, publicado em 1980), o historiador e escritor britânico Cyril Northcote Parkinson (1909-1993) distingue seis estágios sequenciais pelos quais as civilizações passam rumo ao caos e à dissolução:

1 – Supercentralização da Política.

2 – Crescimento imoderado da tributação.

3 – Aumento do sistema de administração centralizado.

4 – Promoção das pessoas erradas no labirinto burocrático formado.

5 – Ímpeto de esbanjar: depois de anos ou décadas de gastos públicos, o governo, privado da coragem de reduzir seus custos e tendo alçado os impostos a uma carga quase insustentável, faz uma enorme dívida e a descarrega sobre os ombros de alguma geração futura.

6 – Predomínio das opiniões liberais: o sentimentalismo fraco drena a Razão e a vontade de grande parte da nação, que agora não pensa mais no futuro – seu maior interesse é apenas o presente e nada muito além disso.

Soa familiar para você?

“PENSAMENTO POSITIVO” E “MENTALIDADE GUERREIRA” NÃO AUMENTAM AS CHANCES DE SOBREVIDA EM PESSOAS COM CÂNCER*



A televisão, os jornais e as mídias sociais vivem sugerindo que pessoas com câncer deveriam apegar-se à fé e ao otimismo, pois suas chances de cura poderiam ser aumentadas por meio de pensamentos positivos ou adotando-se uma “mentalidade de luta”.

Lamento informar que não existem evidências científicas convincentes de uma associação entre a personalidade e a sobrevida em pessoa com câncer. Os estudos que mostram “associações positivas” em geral são de qualidade metodológica inferior ou substancialmente menores que estudos mostram “nenhum efeito”
.
A psicoterapia pode melhorar a qualidade de vida e a adesão ao tratamento, mas nenhum estudo clínico randomizado ou metanálise provou qualquer efeito da psicoterapia na sobrevida de pacientes oncológicos. Tampouco existem evidências sólidas de que “ter câncer” seja capaz de enriquecer a experiência de vida de alguém ou leve a um crescimento pessoal capaz de aumentar da percepção de felicidade.

Se uma doença não é um “faz-de-conta”, ela não deve ser tratada com pensamentos ilusórios (wishfull thinking) trazidos diretamente da terra das fantasias metafísicas não-comprovadas. Em Medicina, a melhora de uma doença grave não depende da “torcida”. Ela depende de tratamento adequado e Ciência.


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03 agosto 2018

O CÉREBRO, O SELF E A ALMA*

A neurociência continua tentando determinar em que parte do cérebro a Identidade Pessoal se esconde. O Córtex Pré-Frontal lidera as apostas, mas a corrida está longe de terminar (14).  Não obstante, ao sediar anatomicamente a Identidade Pessoal no cérebro, a ciência introduziu alguns dilemas interessantes: como nos demais mamíferos, o cérebro humano é dividido em dois hemisférios - esquerdo e direito -, unidos principalmente por uma estrutura chamada Corpo Caloso. Ao longo da vida, 3% das pessoas serão afetadas por um transtorno onde um foco de neurônios “decide” disparar descargas anômalas que atravessam as centenas de milhões de projeções axônicas do corpo caloso, atingindo os hemisférios cerebrais como uma tempestade elétrica (15). Estas tempestades generalizadas manifestam-se como crises convulsivas e são conhecidas como Epilepsia.

Cerca de 30% dos portadores de Epilepsia sofrem com convulsões severas que não respondem a qualquer tratamento medicamentoso, levando uma vida miserável (15). Na década de 1940, neurocirurgiões americanos elaboraram uma alternativa para resolver este martírio: um procedimento cirúrgico paliativo denominado Calosotomia (1). Na Calosotomia, o corpo caloso é parcial ou totalmente seccionado, diminuindo ou eliminando o tráfego de impulsos cerebrais por esta via. Quando bem indicada e realizada de maneira precisa, a operação obtém um bom índice de sucesso no controle das convulsões (2,3). Entretanto, se a Identidade Pessoal depende do funcionamento do cérebro e o cérebro possui “duas partes”, quando separamos estas partes, a Identidade muda? Será que um cérebro dividido ao meio divide também a Identidade ao meio, ocasionando um corpo habitado por uma mente com duas Identidades diferentes?

Alguns pacientes submetidos à Calosotomia desenvolvem transtornos na fala, na visão, na orientação espaço-temporal, na memória de curto prazo e na coordenação motora (em um caso, uma paciente relatou que suas mãos pareciam discordar e competir entre si, tornando atividades tão banais quanto comer um sanduíche uma dança angustiante) (4). Felizmente, na maioria das vezes, estes desarranjos desaparecem com o tempo. Quanto à Identidade Pessoal, nenhuma alteração significativa jamais foi percebida (5,8).

A manutenção da Identidade Pessoal nestes indivíduos pode ser explicada por dois fatores. Primeiro: o corpo caloso certamente é a autoestrada inter-hemisférica mais movimentada, mas não é a única – muitos outros feixes de neurônios cruzam de um lado para o outro nas comissuras anterior, hipocampal, habenular, posterior e supra-óptica. Portanto, quando o corpo caloso é seccionado, o cérebro não é exatamente “dividido ao meio”. Segundo: pesquisas mostraram que, apesar de algumas funções específicas serem privilégio de um ou outro hemisfério, tudo indica que as operações cerebrais funcionem em um esquema de mutirão – por meio da neuroplasticidade, os comandos podem ser processados acionando-se qualquer área capaz de atender às necessidades do momento (13). A função do corpo caloso não é unificar a experiência da consciência entre os hemisférios, mas duplicá-la: a Identidade Pessoal não existe de um ou outro lado, mas em ambos os lados do cérebro, simultaneamente (6).

A história de “essa função ocorre do lado esquerdo; aquela função, do lado direito” é um mito famoso sobre a especialização cerebral, mas 99,9% desta concepção lendária não vai muito além disso – de uma lenda. Como mencionado, a secção do corpo caloso não redunda em duas Identidades Pessoais, mas na continuidade de uma consciência unitária que passa a perceber o mundo utilizando vias de informação mal-integradas (7). Além disso, mesmo removendo-se integralmente um hemisfério cerebral, a Identidade Pessoal não se altera (9,10). Mas aqui surge outra interrogação: se fosse possível pegar o hemisfério cerebral retirado de uma pessoa e transplantá-lo em um Receptor de corpo inteiro (por exemplo: alguém que sofreu morte cerebral, mas, fora isso, apresenta um corpo em boas condições de funcionamento), teríamos dois corpos com a mesma a Identidade Pessoal?

Para os partidários do discernimento científico, a resposta é simples: em um primeiro momento, antes que o paciente Receptor realizasse qualquer input de informação, ele e o Doador compartilhariam uma mesma e exata Identidade Pessoal. Assim que começassem as interações com o ambiente, essas Identidades iniciariam seu processo de divergência.

As experiências jamais são absolutamente idênticas para duas pessoas: ainda que se sentem bem próximas na hora do almoço, cada uma percebe o ambiente a partir de sua própria cadeira. Basta ver o que ocorre com gêmeos univitelinos: até onde os genes demandam, eles se parecem. A partir das fronteiras onde o mundo os influencia, eles destoam progressivamente, desenvolvendo suas próprias Identidades a despeito de serem 100% equivalentes em termos genéticos. Em nível anátomo-fisiológico, continuarão gêmeos; em nível sócio-econômico-cultural, formarão Identidades específicas. Um fenômeno análogo sucederia com nossos pacientes Meio-Cérebro Doador e Meio-Cérebro Receptor: eles começariam como Identidades iguais, mas logo se tornariam Identidades Ímpares, ainda que fundadas a partir de uma mesma base orgânica cerebral.

Todavia, para os adeptos da Identidade Pessoal Permanente – que acreditam que uma alma ou um self místico que ultrapassa a matéria é essencial para o funcionamento do corpo –, a situação se torna um pouco mais complicada.

Após o procedimento, o corpo do Receptor recupera a consciência. Ele acorda, abre os olhos, levanta-se e conversa – mas como isso seria possível, uma vez que a “alma” havia abandonado aquele corpo? Ou será que a “parte imaterial do Ser” ainda habitava o corpo do Receptor mesmo quando seu cérebro foi completamente removido, tendo sido reativada no instante que o meio-cérebro do Doador foi plugado ao sistema? Neste caso, um corpo decapitado ainda possui uma alma? Se positivo, até que ponto podemos ir desmembrando um corpo antes que a alma o abandone de vez? Como demonstrado pelas evidências da neurocirurgia (11,12), cada hemisfério cerebral possui uma cópia inteira de nossas Identidades. De que maneira o Receptor, ao despertar da anestesia, poderia recuperar sua Identidade anterior – jogada fora quando seu cérebro foi integralmente removido?

É óbvio afirmar que um corpo sem cérebro não pode ter atividade cerebral. Até onde vai o entendimento médico e legal, a ausência de atividade cerebral significa “morte”. Se “morte” também equivale à separação da alma do corpo, a partir do momento em que o cérebro do Receptor foi extraído (ou declarado “sem atividade”), seu corpo passou a ser um envelope sem Identidade, uma embalagem vazia, sem self e sem alma. Com o transplante de hemisfério, o “espírito vital” que agora o anima veio na bagagem do meio-cérebro do Doador? Neste caso, a transferência foi de 100% da alma do Doador, 50%, 30%, 10%?

Em um exercício de contemporização, vamos aceitar a suposição de que a “alma imortal” não reside exatamente no cérebro, mas apenas utiliza um corpo viável para se manifestar neste mundo. Considerando que a Identidade Pessoal está sempre mudando de desejos, métodos e valores, sofrendo progressos e decrepitudes Morais ao longo da vida, quais partes desta construção deveriam ser mantidas para que a Identidade do espírito original do paciente Receptor, doravante despido do corpo, corresponda a alguém que ele reconheça como a pessoa que se tornou antes de partir para o além-túmulo? (16)

Finalmente, ao ver o paciente Doador e o paciente Receptor disparando um para cada lado, como reagiria um devoto do sobrenatural se recebesse a ordem: “Pegue aquele que tem a alma inteira!” – atrás de quem ele diria?

Deixo a solução destas dúvidas a cargo dos pensadores que consideram a Metafísica um assunto “válido”. Eu não sou um deles.

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*(Parte integrante do livro "Sobre a Natureza e a Crise da Moralidade', em edição).

Referências Bibliográficas:

1. Van Wagenen WP, Herren RY. Surgical division of commissural pathways in the corpus callosum – Relation to spread of an epileptic attack. Archives of Neurology and Psychiatry. 1940; 44:740-9.
2. Wilson DH, Reeves A, Gazzaniga M, Culver C. Cerebral commissurotomy for control of intractable seizures. Neurology. 1977 Aug;27(8):708-15.
3. Asadi-Pooya AA1, Sharan A, Nei M, Sperling MR. Corpus callosotomy. Epilepsy Behav. 2008 Aug;13(2):271-8.
4. Cendes F, Ragazzo PC, Da Costa V, Martins LF. Síndrome de Desconexão Inter-hemisférica após calosotomia total associada à comissurotomia anterior para tratamento de epilepsia resistente - relato de um caso. Arq Neuro-Psiquiat. 1990; 48(3):385-388.
5. Puccetti R. Brain Bisection and Personal Identity. Br J Philos Sci 1973 Dec; 24(4):339-355.
6. Puccetti R. The case for mental duality: Evidence from split-brain data and other considerations. Behavioral and Brain Sciences. 1981 Mar; 4(1):93-99.
7. Pinto Y, de Haan EHF, Lamme VAF. The Split-Brain Phenomenon Revisited: A Single Conscious Agent with Split Perception. Opinion. 2017 Nov; 21(11):835-851.
8. Yun-Jeong Lee et al. Long-Term Outcomes of Hemispheric Disconnection in Pediatric Patients with Intractable Epilepsy. Clin Neurol. 2014 Apr;10(2):101-107.
9. Sean M. Hemispherectomy in the treatment of seizures: a review. Transl Pediatr. 2014 Jul; 3(3): 208–217.
10. Schusse CM, Smith K, Drees C. Outcomes after hemispherectomy in adult patients with intractable epilepsy: institutional experience and systematic review of the literature. J Neurosurg. 2018 Mar;128(3):853-861.
11. van Empelen R et al. Functional consequences of hemispherectomy. Brain. 2004 Sep;127(Pt 9):2071-9.
12. Moosa AN et al. Long-term functional outcomes and their predictors after hemispherectomy in 115 children. Epilepsia. 2013 Oct;54(10):1771-9.
13. Krishnan SS et al. Neuroplasticity in hemispheric syndrome: an interesting case report. Neurol India. 2011 Jul-Aug;59(4):601-4.
14. Mark R. Leary, June Price Tangney. Handbook of Self and Identity. The Guilford Press (2012).
15. Protocolo de Diretrizes Terapêuticas. Epilepsia. Ministério da Saúde (2015). Acessado em http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2016/fevereiro/04/Epilepsia---PCDT-Formatado--.pdf
16. Eric T. Olson. Self: Personal Identity. In Wiliam P. Banks, Encyclopedia of Counsciousness, Vol. 2. Elsevier Academic Press (2009).