11 abril 2016

Por que ler pessoas mortas?

© Alessandro Loiola


 

No filme O Sexto Sentido, o pequeno Haley Joel Osment conversava com pessoas mortas. Simpatizo com seu fardo: eu leio pessoas mortas, o tempo todo, o que dá quase no mesmo. Pessoas mortas escrevem como ninguém.
 
Leia Nelson Gonçalves, por exemplo. Ele poderia bem ser um Charles Bukowski sem a bebida em um dia bom. Ou quase um Voltaire sem a peruca e com liberdade para usar seus palavrões como quisesse. Ou um Carl Sagan, descontando os conhecimentos de astrofísica porém com o mesmo olhar aguçado sobre as coisas. Ou um Hemingway com mais adjetivos e menos depressão.
 
O fato é que essas pessoas mortas oferecem aquilo que escritores e jornalistas vivos têm se recusado a produzir: opiniões que pensam. Os pouquíssimos desse quilate que existem, concorde eu com eles ou não, merecem aplausos, muitos aplausos.
 
Mais que dinheiro, mais que fama, mais que selfies de músculos definidos, ter uma Opinião Inteligente nos dias de hoje é a sofisticação máxima. Prosperidade e corpos vêm e vão; Ideias embasadas só vêm. Elas têm mais massa e resistência que qualquer série de crossfit. Não precisam de ibope: a Verdade é o patrocínio que as mantém. Necessitam nada além disso que as sustente. Mas peneirar opiniões assim tem se tornado uma tarefa mais árdua a cada dia.
 
Abro as manchetes do UOL, da Folha, do Estadão, do Terra, do Yahoo, e tudo que vem à tela são votações do BBB, tabelas de pontos do campeonato brasileiro, informações inúteis de saúde (que sempre falam de doenças, nunca de saúde) e intrigas bestas de novelas, economia e política. Nenhuma opinião capaz de provocar as sinapses, nenhuma crítica apontando caminhos lúcidos, nenhuma manifestação da verdade. Só tolices.
 
E alguém ainda me diz que nossa sociedade está evoluindo, maturando. Devo ser um burro mesmo. Entendo nada de progresso tecnológico e maturidade. E quero menos ainda ter qualquer coisa a ver com esse desenvolvimento vívido da desinteligência. Vou continuar com os mortos. Eles sabem o que dizem.

08 abril 2016

O que você pediria ao gênio da lâmpada?

© Alessandro Loiola





Em um desses lampejos toscos que temos no chuveiro à noite ou enquanto esvaziamos o conteúdo de nossos intestinos pela manhã - independente do horário ou da atividade, o banheiro sem dúvida é um dos lugares mais criativos da casa! -, fui atingido por uma epifania.

E se, e se!, um gênio aparecesse e lhe concedesse um desejo? Um desejo apenas, um único e miserável desejo.

Considere a possibilidade de ser um gênio em pleno ataque de enxaqueca, ou com TPM, ou numa crise de agorafobia depois de tantos milênios dentro da maldita lâmpada. Ele não está de bom humor. Nada de 3 desejos. Um só. "E não venha pedir mais desejos que eu lhe transformo num ornitorrinco!", ele vai avisando enquanto a fumaça se dissipa.

O que você pediria? Curioso com as possibilidades, reproduzi essa pergunta para algumas dúzias de amigos via whats. "Saúde para meus filhos", "Saúde para mim", "Saúde para meus pais", "Saúde para minha família"... De cara, Saúde disparou como campeã de audiência. Mas também vieram "Viver eternamente" (não seria uma variável de "saúde"?), "Ter muito dinheiro", "Ser feliz", "Viver em paz", etc.

Gostaria de ver a reprodução dessa pergunta em outras culturas. Na ausência dessas evidências, fico com as minhas, atuais e tupiniquins. De cara, é possível perceber uma coisa: o Cunhadismo que herdamos dos índios e dos primeiros colonizadores permanece entranhado em nossos genes. Poderia ter também algo a ver com o instinto de sobrevivência, inato em qualquer ser vivo, mas o rabugento que sobrevive em mim iniste em jogar a culpa no Cunhadismo.

Podendo ter um desejo realizado, qualquer que seja ele, as pessoas restringem suas opções ao seu círculo de confiança. Farinha pouca, meu pirão primeiro. E nada de aparecer um pseudo-altruísta preocupado em resolver a fome, as doenças, as guerras, a violência gratuita, a injustiça descarada. Não, nada disso. Tudo que as pessoas querem é uma sombra fresca e verdejante onde possam pendurar suas redes plácidas pelo tempo de suas existências.

Do ponto de vista do meu umbigo egocêntrico, enxergo que a causa maior do sofrimento da humanidade é a Ignorância - e, por ignorância, seguimos causando nosso próprio sofrimento e o sofrimento de outrens. Por isso, se eu encontrasse o desgraçado do gênio, pediria a ele a extinção absoluta de TODA ignorância.

E tenho certeza de que o mundo se acertaria bem, muito bem, a partir daí. Mesmo você e sua família não vivendo eternamente.

Um bicho chamado Gente

© Alessandro Loiola
 


 

Existe um animal dentro de cada um de nós. Ainda que tentemos sufocá-lo com as noções de santidade que nos ensinaram nas aulas de catecismo, e ainda que algumas pessoas insistam por todos os meios subtraí-lo de si, ele resiste. E eu tenho orgulho dele.
 
Sim, tenho um profundo orgulho do animal que sou, de seus instintos todos, sua voracidade pelo mundo, o afiado dos seus dentes com fome de carne. O animal de poucas saciedades, rugindo hormônios não domesticados. Fomento sua sobrevivência em mim, alimento-o com desejos e retiro sua coleira vez ou outra e o assisto correndo satisfeito sacudindo fantasias rudes de seus pelos.
 
Nessas horas, vejo pessoas em suas roupas sofisticadas, os trejeitos civilizatórios, observando assombradas . "De onde veio isso?", se perguntam. Veio de dentro, praga. Veio de dentro! De milhares de translações de inquietação sem juízo, de milhões de anos de bruta seleção natural, bilhões de primaveras de genética amoral. E o animal corre, sem amarras, devorando o mundo que o consome.
 
O animal que somos não é uma escolha, nunca foi. É uma necessidade, bando de pamonhas.

07 abril 2016

Sua existência como um Agronegócio

© Alessandro Loiola


 

A escritora Gail Sheehy disse que "A vida é uma coletânea de 3 ou 4 destinos que se repetem furiosamente". Eu não iria tão longe: três ou quatro são projeções bem otimistas. Penso que cumprimos um único mesmo destino delicadamente arado na superfície deste planeta.
 
Veja: todos começamos pela infância, uma primavera de sonhos germinativos da qual trazemos umas lembranças poucas, turvas, embaralhadas, cheias de barro, água e ventos.
 
As estações se passam e desabrochamos para a invenção da adolescência, uma tempestade de xilemas onde entendemos que nossas folhas se estendem para além daquelas dos nossos pais. Começamos então a arrancar as raízes todas, excisando as certezas plantadas em nós, e brotamos nossas próprias verdades - que são verdes e frágeis, mas enfim são nossas (ou pelo menos assim nos enganamos).
 
Terminada a adolescência, agora distantes das sombras dos galhos da família, adubando os dias com experiências e habilidades, eclodimos dos 20 aos 30 anos para virarmos mudas de fato.
 
Aos 30 anos começa o período onde fazemos questão que a plantação em que nos transformamos produza dinheiro, muito dinheiro. As décadas mudam, as doenças seguem quase as mesmas, eu sei. Queremos, queremos bastante, queremos mais.
 
Entre os 40 e os 50, uma tempestade de granizo grisalho nos atinge e decidimos mudar o terreno. Conhecemos o mercado das plantas, aprendemos a reconhecer as ervas daninhas e somos capazes de ensacar nossos grãos, mas alguma coisa ainda parece incompleta. Então aplainamos todos aqueles alqueires com o trator dos questionamentos "maduros" e, achando que estamos fazendo alguma coisa diferente, começamos o mesmo processo de novo.
 
Por volta da curva dos 60, milionários pelos nossos frutos ou não, contemplamos o conhecimento de agronomia de vida acumulado e sentimos uma urgência em passá-lo adiante. Quiçá, com aquela bagagem, os mais novos sejam capazes de melhorar suas chances... Mas os mais novos estão cegos e surdos em seu frenesi vegetal de arrancar raízes e colher fortunas.
 
Adentrando nos hectares altivos dos 70, os mais tolos se perdem na ilusão obsessiva do legado ou na crítica imbecil do arrependimento. Aqueles abençoados por alguma saúde lúcida, simplesmente dão de ombros e vão viver suas vidas. As décadas de colheitas finalmente lhes ensinaram que não somos plantas. Nem animais. Somos alguma outra coisa que talvez valha à pena descobrir.
 
Finalmente, em algum lugar para além dos 80, o círculo derradeiro do mundo nos alcança com um sonho no qual levamos umas lembranças poucas, turvas, embaralhadas. Confusos ou não, prontos ou não, com ou sem nossa permissão, o outono vem e nos transmuta novamente em barro, água e ventos infinitos.

Qual o melhor amigo do homem?

© Alessandro Loiola


Quando criança, na sala de casa, meus pais construíram uma muralha em forma de estante e espalharam pelas prateleiras um universo eclético de páginas que se estendiam desde a Enciclopédia Barsa à Delta Universal, passando por atlas, mapas, coletâneas de contos, poesias de Olavo Bilac e Cecília Meirelles, romances de Hemingway, novelas de Morris West e Sidney Sheldon, crônicas de Fernando Sabino e Luis Fernando Veríssimo e um muito velho volume de autênticas lendas indígenas brasileiras.

Devorei cada um daqueles livros antes da adolescência - sim, inclusive as enciclopédias. E feito um hobby sádico da infância, sentados à mesa para o almoço, desafiava meu pai com o conhecimento recém-adquirido:

- Pai, você sabe o que significa o "DC" em Washington DC?
- Hum. - ele respondia, o olhar de lado dizendo "lá vem...".
- Distrito de Columbia.
No outro dia:
- Pai, você sabe qual mamífero põe ovos?
- Não tenho notícia de que mamíferos ponham ovos...
- Os ornitorrincos põem.
- Hum. - ele respondia, o olhar de lado dizendo "mais uma...".
E no dia seguinte:
- Pai.
- Fala, Sandro.
- É verdade que TODOS os rios correm para o mar?
- Eu achava que sim, mas pelo visto você tem alguma novidade aí.
- Os rios temporários no outback da Austrália não correm para o mar. Eles vão de lugar algum a lugar nenhum.
- Hum, sei... Come, Sandro.
 
Eram bons almoços e tenho saudades de todos eles. Dia após dia, depois da refeição, do cochilo e das tarefas da escola, se estivesse chovendo ou se nenhum colega me chamasse para jogar bola ou perambular de bicicleta ou travar batalhas de estilingue e mamona, eu me deixava perder de novo nas galáxias da estante.
 
Gosto de ler desde que me lembro de ter aprendido a ler, e os sintomas dessa doença apenas se acentuaram com os anos. Quando pergunto a alguém "Qual seu livro preferido?" ou "O que você anda lendo?" e recebo de resposta algo como "Não sou muito de ler...", não posso deixar de sentir uma certa compaixão por aquela pobre alma.
 
Neste mundo de pequenas pessoas aterrorizadas, guardadas nas miudezas de suas camas convencionais, tão cheias de planos quanto seus planos são vazios de si, só enxergo esta única saída da mediocridade absoluta: a leitura. Pois se a vida é uma mochila, os livros são sua estrada, e ler é viajar em passos rápidos, tão rápidos que cedo chegará o ponto em que nenhuma pessoa ao seu lado, além dos deuses, saberá o que há mais a frente.
 
Felizmente, dependendo do que você anda folheando, quando este momento chegar você poderá contar-lhes um pouco sobre tudo que leu ao longo da jornada. E, nessa hora, até os deuses irão pausar seus ofícios para ouvir o que você tem a dizer.

01 abril 2016

O Lado Bom do Lado Ruim

© Alessandro Loiola


Todo mundo adora histórias de pessoas que foram transformadas por seus problemas. O sujeito tem aquela vida tranqüila e, de repente, é jogado no meio de um furacão, maremoto, enchente, crise de herpes com ciática, é despedido, o cachorro morre atropelado pelo entregador de pizza... E, depois de quase tudo perdido, ele consegue dar a volta por cima. Vencedor no final, sai de peito aberto para enfrentar o mundo dizendo: "Preferia que tal coisa não tivesse acontecido, mas agora que aconteceu, me tornei uma pessoa melhor!"

A capacidade de reagir positivamente a um evento negativo não é uma exclusividade dos bravos e durões do cinema. Esta característica está aí, profundamente incrustada na sua mente, faz parte do seu organismo. Você pertence à espécie humana? Então você possui tudo que é necessário para transformar seus limões em uma bela limonada.

Há algum tempo, os cientistas vêm se debruçando para elucidar o que batizaram de Crescimento Pós-Traumático, que nada mais é senão uma versão sofisticada para o ditado “O que não me mata, me fortalece”. Os especialistas observaram que mais de 50% das pessoas que passaram por problemas sérios dizem que a adversidade as tornou de algum modo melhores, mais fortes, mais esclarecidas – e, por que não dizer, mais felizes.

Mesmo após as mais terríveis experiências, apenas uma pequena proporção das pessoas se torna cronicamente perturbada. A resposta mais comum é a superação. E muitas vezes com um profundo crescimento pessoal.

Esta constatação, de que necessitamos dos problemas para extrair o melhor da vida, é um dos maiores paradoxos da felicidade. Para experimentar uma vida humana completa, não basta levar uma existência tranqüila e imperturbável. É preciso mudar, crescer, confundir-se, tropeçar, sacudir velhas idéias e adquirir novos valores – e, algumas vezes, este processo dói.

Os problemas graves também desafiam a idéia de que “coisas ruins não acontecem para pessoas boas”. Você quer pensar que possui controle sobre tudo, que plantando o Bem apenas o Bem lhe acontecerá. Entretanto, apesar da garantia de dor e desconforto, você deve saber que a maioria dos que enfrentaram grandes adversidades diz que a dificuldade os tornou mais tolerantes, mais capazes de perdoar e de trazer paz para situações problemáticas. Depois da tormenta, estas pessoas se tornaram capazes de identificar claramente a tolice das ambições materiais, e passaram a investir mais no prazer da companhia da família e dos amigos.

Os diplomados em Crescimento Pós-Traumático não dizem que o que passaram foi maravilhoso, mas não esperavam que aquela tribulação pudesse resultar em crescimento interior. E terminaram ganhando muito mais do que jamais poderiam ter imaginado. Pense nisso da próxima vez que um problema estiver batendo à sua porta: sempre existirá um lado bom. Até mesmo no lado ruim.