© Alessandro Loiola
Entre os profissionais de saúde – e principalmente no meio da indústria
farmacêutica - o termo “BO” costuma ser utilizado para se referir a remédios
que não fazem qualquer mal tampouco fazem qualquer bem, indicados para acalmar
ansiedades, nutrir falsas esperanças e encher um pouco mais os bolsos dos seus
fabricantes.
Pois atenção: o assunto “BO” (que eu confortavelmente traduziria BO para Boa para Otário) vai muito além
dos comprimidos no balcão da farmácia.
A Filosofia de Vendas
BO
A maioria das pessoas acredita que informações sem fundamento são fáceis
de perceber, mas esta é uma certeza traiçoeira. A Filosofia de Vendas BO se utiliza da ciência – melhor dizendo, de suas próprias versões da ciência – para
vender ideias e produtos. Seus promotores são “cientistas à frente de seu
tempo”, “pesquisadores de ponta”, que desenvolvem técnicas inovadoras de
acupuntura, alimentos orgânicos, análises de cabelo, megavitaminas, fórmulas
antiestresse, chás para diminuir o colesterol, palmilhas magnéticas, dietas que
curam AIDS, eliminadores de manchas e estrias, ativadores da imunidade, tônicos
capilares milagrosos, purificadores ionizantes de água, panelas que aumentam a
quantidade de nutrientes da comida, alimentos especiais para equilibrar a
química do corpo, etc.
Nestes casos, o que vende não é a qualidade do produto, mas a capacidade
de influenciar a “audiência” (leia-se clientes).
Campanhas BO´s atingem as pessoas emocionalmente. Boa parte dos produtos e
abordagens jamais passou por qualquer experimento científico sério que
comprovasse sua eficácia.
Desde a antiguidade, as pessoas vêm perseguindo quatro porções mágicas
diferentes: do amor, da fonte da juventude, da cura de todos os males e a
superpílula atlética. Os BO´s em geral se encaixam em uma dessas categorias
de desejo. O que antes eram chifres de unicórnio, elixires, unguentos e
amuletos, viraram vitaminas, pirâmides, extratos de ervas, florais,
aromas, cristais, cromoterapia e muitos outros produtos disfarçados de ciência.
Atletas vendem cereais que nos transformarão em campeões. Suplementos de
vitaminas devem ser utilizados por todo mundo, sem contraindicações. E por aí
vai.
Identificando uma abordagem BO
É possível identificar 10 linhas gerais da Filosofia de Vendas
BO. Elas podem ocorrer isoladas ou em combinações criativas.
Conhecê-las é importante para avaliar até onde determinada informação baseia-se em ciência de
verdade ou em falcatruas vazias.
1. Testemunhos: experiências
pessoais não são suficientes para comprovar a eficácia de um determinado
medicamento ou produto. É perigoso acreditar que, apesar de um remédio para uma
determinada doença grave não ter funcionado em diversas outras pessoas, ainda
assim – e estranhamente - existe uma boa chance dele funcionar para um
indivíduo isolado. A maior parte das pessoas que acredita ter obtido sucesso
com o uso de uma terapia não-ortodoxa gosta de divulgar sua história – pessoas
amam serem ouvidas. As “testemunhas” em geral são motivadas por um desejo
sincero de ajudar terceiros, mas raramente atentam para o fato de como é
difícil avaliar um produto com base em experiências pessoais. Tampouco lhes
passa pela cabeça a possibilidade da melhora ter sido uma mera coincidência e
não resultado do tratamento.
2. Objetivos Fantasmas: muitas
campanhas dizem algo como “gostaria de se sentir melhor e ter uma aparência
mais saudável? Experimente o produto X e tenha mais saúde, paz de espírito e
vida sexual mais ativa! Você verá a diferença em poucas semanas!”. As
pessoas normalmente possuem altos e baixos e apenas a consciência de estar
tomando uma decisão positiva já pode gerar bem-estar sem que isto tenha
qualquer relação direta com o produto. Outros BO´s não prometem curar o
problema em si, mas “desintoxicar o corpo” ou “auxiliar o organismo no processo
de cura”, ainda que não seja possível avaliar cientificamente os mecanismos
envolvidos na obtenção destes incríveis efeitos.
3. Doença Inventada: praticamente
todo mundo uma vez ou outra apresenta sintomas como dores leves, reações ao
desgaste do dia-a-dia, variações hormonais, efeitos da idade, etc.
Rotular estes altos e baixos absolutamente naturais como manifestações de
alguma doença permite aos promotores da Filosofia
de Vendas BO oferecer um produto diferente para cada situação da vida.
4. Palavras Coringa: nesta
variação da abordagem “Doença Inventada”, os vendedores sugerem que a
ocorrência de um ou mais itens de uma interminável lista de sinais e sintomas
podem ser evidências da necessidade imediata de utilizar determinada vitamina,
dieta, calçado magnético, energizador de ambiente e outros.
5. Empurroterapia: muitos
balconistas de farmácia são mestres em “empurroterapia”, repassando o remédio que
lhes dá a maior porcentagem de participação na venda. E alguns ainda dizem que
“se você não usar, várias coisas terríveis podem lhe acontecer” e dão seu
testemunho. Alguns dias mais tarde, passando pela mesma farmácia, lhe perguntam
se algumas daquelas coisas terríveis – e estatisticamente improváveis de
acontecer – ocorreram. Com a negativa, eles comemoram o sucesso com você. “Vê?
Agora imagina se você não tivesse feito uso do produto X em tempo...”.
6. Estimulando o Livre-arbítrio: a
ideia de tomar decisões satisfaz o ego da maioria das pessoas, tornando comuns
BO´s que se autodenominam “alternativos”. Frequentemente, esses produtos
recomendam que a pessoa mude de estilo de vida ou associe a terapia
“alternativa” a um tratamento tradicional. Quando os benefícios surgem, os BO´s
então procuram ficar com todos os créditos. Será que apenas as mudanças no
estilo de vida ou o uso isolado do tratamento tradicional teriam surtido o
mesmo efeito, sem necessidade do BO? Para os fabricantes, obviamente não: os
lucros diminuiriam.
7. Teoria da Culpabilidade: muitos
tratamentos alternativos se apoiam na “Teoria da Culpabilidade”. Por exemplo,
ao tratarem de pacientes com câncer, se os efeitos não são esperados, isso
ocorreu pois o “sistema imune” já estava demasiadamente prejudicado pela
radioterapia e/ou quimioterapia, o que impediu a ação do BO.
8. Teoria da Conspiração: nesta sandice, Governo, Associações
Médicas, Laboratórios farmacêuticos e outros setores estariam todos envolvidos
em uma conspiração monstruosa para perpetuação das doenças. É uma tolice sem
tamanho. Entre outras coisas, médicos não prosperam mantendo as pessoas
doentes, mas curando-as. Vários BO´s se intitulam vítimas de “conflitos
filosóficos” com os padrões médico-científicos vigentes, quando deveriam
simplesmente admitir que oferecem métodos não-comprovados ou mesmo fraudulentos
no lugar de abordagens tradicionais, eficazes e comprovadas. A Filosofia de Vendas BO é especialista em
afirmar que trabalhos científicos mostrando a ineficácia de seus produtos
tiveram os resultados “comprados” por grandes companhias farmacêuticas.
9. Associação Cultural: para atingir a população-alvo, associa-se o produto a alguma crença
popular. Um bom exemplo são os frascos com água do Rio Jordão, areia do Muro
das Lamentações, cristais, joias, imagens ou medalhinhas abençoadas e congêneres.
10. Inspirando Confiança: uma vez que o foco
não são os resultados em si, mas a alimentação de esperanças – ainda que falsas
-, a maioria dos BO´s se faz acompanhar de uma publicidade recheada de
confiança. São comuns frases do tipo “efeito comprovado em mais de 100 estudos
realizados em diversos países”, mas nunca se consegue saber exatamente quais
estudos, realizados por quem e em quais países. Além disso, mesmo quando os
promotores de vendas de BO´s admitem que determinado método ainda necessita
maiores investigações científicas, eles procuram minimizar este dado e
maximizar a autoconfiança nos resultados positivos – e se esforçam para que
este entusiasmo contagie os consumidores. "A cada dia a ciência está comprovando que...", diz o sujeito de terno e gravata segurando um frasco de qualquer coisa.
Sucesso nas vendas,
problemas na Filosofia
No quesito “satisfação do cliente”, a arte ganha da ciência em quase
todos os níveis sócio-econômicos. Apesar da Filosofia
de Vendas BO oferecer um certo – e muitas vezes valioso - apoio psicológico
aos pacientes, elas também favorecem o surgimento de uma confiança
supervalorizada no vendedor e em seu produto. E este é um ponto perigoso.
A possibilidade de atrair a vítima com promessas infundadas, afastando-a
do tratamento realmente eficaz, é um aspecto cruel. Mesmo quando a morte é
inevitável, falsas promessas podem produzir danos importantes. Vários
especialistas que analisam o processo de morte mostraram que, apesar da reação
inicial de choque e incredulidade, os pacientes terminais se adaptam
razoavelmente bem à situação desde que não se sintam abandonados. As pessoas
que aceitam a inevitabilidade do seu destino não apenas morrem psicologicamente
preparadas mas também podem colocar assuntos práticos em ordem. Por outro lado,
aquelas que se apoiam em BO´s, podem se perder em atitudes de negação. Gastam
inutilmente não apenas recursos financeiros, mas também o pouco tempo que lhes
resta.
Os BO´s gostam de afirmar que “a ciência não possui todas as respostas”.
Isto é verdade, mas a ciência jamais se propôs a tê-las. Ciência é um processo
racional e responsável que pode responder a várias perguntas, mas não é
perfeita e tem sua cota de insucessos. A bem da verdade, estes mesmos
insucessos refletem um elemento-chave da Ciência: sua disponibilidade em testar
seus próprios métodos e crenças, abandonando o que se mostra ineficaz.
Os verdadeiros cientistas não possuem qualquer comprometimento filosófico
com um tratamento em particular, mas apenas com o desenvolvimento e utilização
de métodos seguros e eficazes para um determinado propósito. Quando um remédio
ou abordagem BO não consegue passar por um teste científico, seus proponentes
simplesmente rejeitam os resultados e se comportam de maneira similar aos
mágicos no circo, retirando a atenção do público daquilo que realmente
interessa. Quando confrontada com críticas fundamentadas, a Filosofia de Vendas BO simplesmente muda
de tópico, incapaz de responder perguntas simples, tais como: de que maneira foi
comprovada a eficácia do produto? Em que revista foram publicados os resultados
dos estudos científicos comprobatórios? Quais as possíveis contraindicações e
efeitos adversos daquele tratamento?.
Como evitar a Filosofia de Vendas
BO ?
Infelizmente, as abordagens BO´s não possuem uma tarja de advertência no
frasco ou vêm acompanhadas de avisos do Ministério da Saúde. Além disso, alguns
produtos realmente eficazes em um determinado tratamento podem ser utilizados
como BO´s em outros – p.ex., remédios comprovadamente úteis para controle do
tabagismo são vendidos em associação a suplementos vitamínicos suspeitos.
A melhor medida é desconfiar sempre. A Natureza não dá saltos e soluções
milagrosas devem ser avaliadas com boa dose de reserva.
Não
pretendo desvalorizar experimentos e alternativas honestas direcionadas para a
diminuição do sofrimento alheio, mas, antes, ilustrar como os BO´s se promovem
e prosseguem iludindo o grande público, algumas vezes com consequências
bem ruins.