"O Intuicionismo foi uma filosofia dominante na Inglaterra do começo do século XVIII até o final da década de 1930, caindo em desuso a partir dos anos 1940. Nos estertores do século XX, voltou a ganhar alguma notoriedade, principalmente a partir da disseminação das ideias de filósofos como Harold Arthur Prichard, George Edward Moore, William David Ross e Russ Shafer-Landau.
Apesar de seu viés aparentemente Realista e Consequencialista, o Intuicionismo surgiu em contraposição ao Utilitarismo de Bentham e Mill e à Deontologia de Kant. Mais modernamente, tornou-se um refúgio para aqueles que negam o valor do Realismo Moral Naturalista: os intuicionistas pregam que a Moralidade é autônoma e não pode ser completamente explicada em termos de propriedades Naturais. Os fatos Morais – as Verdades substantivas – são auto-evidentes e acompanham-se de uma intuição clara suficiente para justificar a crença. Para acreditar em um fato Moral, basta a ratificação da premonição de que tal arbítrio constitui um fato Moral. Este é o disparate defendido com unhas e dentes pelos mestres do intuicionismo. Duvida? Vejamos:
Prichard argumentou que toda a filosofia Moral repousa em uma sequência de erros, pois o Bom e Correto não depende exatamente do que deduzimos ser Bom e Correto. As obrigações Morais não podem ser alcançadas por meio de argumentos submetidos ao desejo ou à busca pela Virtude, ou mesmo através de raciocínios não-Morais (como a Ciência, por exemplo). Como o conhecimento da Moral é imediato, ele não precisa – nem mesmo deve – ser validado ou aprimorado por conhecimentos adicionais (1).
O britânico Moore também defendeu que o Bom e Correto é apenas uma ideia, assim como a cor amarela é apenas uma ideia. Não é possível explicar o que é a cor amarela para alguém que não a conheça de antemão. Da mesma maneira, para entender o que Bom e Correto, já devemos saber antecipadamente o que Bom e Correto representa – e esta conceituação pode ser apreendida consultando-se a intuição. Em outras palavras: Bom e Correto significa Bom e Correto e isto é tudo que precisa ser dito com respeito a este fato Moral (2).
Moore considerava o Naturalismo uma falácia, pois o Naturalismo propunha que os fatos Morais poderiam ser analisados em termos de propriedades físicas ou psicológicas que existem no mundo Natural. Para ele, Verdades substantivas são Verdades substantivas e pronto. Em caso de dúvida, consulte sua intuição e ela lhe dará a resposta. Moore era um professor universitário e suas ideias sobre o que é Bom e correto eram limitadas à sua tranquila vida acadêmica. Suas teorias nem de perto são úteis quando precisamos lidar com dilemas Morais sérios.
Um pouco mais Deontológico que Moore, o escocês William David Ross postulou que a “ordem Moral é tanto uma parte fundamental da natureza do universo como sua própria estrutura especial e numérica expressa nos axiomas de geometria e aritmética”. Apesar desse início sólido, Ross se uniu ao coro dos intuicionistas ao concordar que todos os fatos Morais podem ser conhecidos sem necessidade de qualquer argumentação, indício ou justificativa além de si mesmos: a dedução do fato Moral é apenas uma sensação que ocorre após sua imediata e automática apreensão pela consciência. Contudo, para Ross, esta intuição difere de uma crença, estando mais para uma percepção convicta: somos dotados de uma enigmática capacidade de perceber a obviedade de uma Verdade substantiva tão logo ela se apresenta diante de nós (3).
Finalmente, temos Shafer-Landau, professor de filosofia na Universidade da Carolina do Norte (EUA), um dos maiores defensores do Intuicionismo na atualidade. Como seus antecessores, Shafer-Landau insiste que os fatos Morais não podem ser reduzidos em termos Naturais: o Bom e correto não pode ser descrito em termos de prazer ou dor, tampouco pela conclusão de qualquer ciência Natural (como física ou biologia) (4). Para discerni-lo, basta-nos a revelação que ocorre por meio do faro hermético da intuição.
Em resumo: o Intuicionismo baseia-se na premissa de que todos os fatos Morais podem ser assimilados por meio da intuição. Intuitivamente, os intuicionistas aparentam estar certos: nossas investigações empíricas podem nos informar muitas coisas sobre o mundo, mas são incapazes de dizer se certos atos são certos ou errados, bons ou ruins. Por exemplo: tudo que a ciência pode nos dizer é que o sistema nervoso das lagostas é desenvolvido o suficiente para que elas sintam dor. O julgamento se é certo ou errado fervê-las vivas não cabe à Ciência. Como isso não pode ser determinado empiricamente, o melhor a fazer seria inquirir a intuição.
O problema é que os princípios Morais dos intuicionistas, por serem considerados auto-evidentes, prescindem de evidências adicionais – pelo menos segundo eles mesmos. Por que você acredita que a parede é branca? Porque ela parece branca. Por que você acredita que o sofrimento é ruim? Porque ele parece ruim. E daí em diante. Todavia, existem muitas verdades óbvias que não são auto-evidentes: a água é composta por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio; o calor corresponde à intensidade de movimento das moléculas em um corpo; nosso sistema Solar é apenas um entre bilhões de outros sistemas estelares em nossa galáxia; etc.
Apesar das intuições oferecem boas justificativas para muitas coisas, elas não são capazes de fazer o mesmo com a Moralidade. Sem a validação por provas concretas, os equívocos intuicionistas tendem a se acumular assustadoramente: o fato de você ter uma tendência intuitiva para acreditar em algo não torna aquele algo verdadeiro. Ademais, em termos de julgamento Moral, a cultura nos levou a considerar intuitivamente algumas coisas como Boas e Corretas, mas isso não ocorre porque elas são Boas e Corretas per se, mas porque fomos influenciados pelo meio a considerá-las dessa forma.
Por exemplo: algumas tribos indígenas sacrificam um bebê gêmeo por considerar que a alma da criança está dividida entre dois corpos. Assassinando um dos irmãos, a alma poderá se reunir por inteiro no sobrevivente. A intuição deles diz que esta “verdade óbvia auto-evidente” é Moralmente correta. Nossa intuição diz o contrário.
Outro exemplo: Hitler e os nazistas podem ter achado óbvio que sufocar crianças e mulheres em câmaras de gás era uma conduta notoriamente justificável per se; e, por ser óbvia, era crível; e por ser crível e óbvia, poderia ser considerada Moralmente aceitável.
Como animais, os humanos vêm “montados de fábrica” com um conjunto de percepções Morais que podem ser, inicialmente, consultadas por meio da intuição. Mas o progresso Moral depende de uma sofisticação nesta configuração inicial. Confiar este progresso à intuição individual - e não a um método específico como o proposto pelo Naturalismo - afasta o Intuicionismo de qualquer possibilidade de Realismo Moral. Ao admitir que o julgamento Moral é um processo cognitivo de sensibilidades e entendimentos subjetivos, o Intuicionismo assemelha-se muito mais a uma conduta Relativista fundamentada em argumentos motivacionais circulares: “porque tal coisa soa óbvia, eu acredito; e porque acredito, então tal coisa é óbvia; e por ser óbvia e crível, então tal coisa é um fato Moral justo e preciso”. Esse tipo de raciocínio torna a Verdade substantiva facilmente moldável ao que parecer mais conveniente no momento e, dada sua excessiva permissividade, a ferramenta demagoga do Intuicionismo pode ser empregada como legitimação para as maiores atrocidades.
Mesmo com estes malogros sobre a mesa, os intuicionistas insistem que os fatos Morais, a despeito de serem inatingíveis pela investigação empírica, seriam acessíveis diretamente através da intuição, sem necessidade de algum processo de raciocínio (5). Como explicitado, isso torna a concepção de Bom e Correto dos intuicionistas motivacional, indefinida e indecifrável.
Ao levantar uma aura de mistério em torno dos fatos Morais, pressupomos a existência de uma faculdade quase mística que nos permite apreender as Verdades substantivas: a intuição seria um sexto sentido capaz de nos conduzir à boa Moralidade. Com efeito, mais que um misticismo, o intuicionismo é insuficiente para explicar a mais simples discordância em ética: se eu penso que comer carne é errado por um instinto Moral, como posso convencer alguém que pensa exatamente o contrário e que também se sente justificado em acreditar nisso baseado em sua própria intuição?
Uma réplica intuicionista é que só deveríamos levar em consideração a intuição de pessoas ponderadas e bem educadas, pois somente essas intuições seriam confiáveis. A disfunção deste argumento é o seu caráter evidentemente circular: afinal, quem deve ser considerado “bem educado”? Somente aquelas pessoas que aprovam minhas intuições? Pode haver uma tendência, se pensarmos assim, de acusar de cegueira moral qualquer um que esteja em desacordo conosco.
Quando um intuicionista pondera sobre um assunto, a única coisa que ele tira de sua caixa de ferramentas intelectivas são seus sentimentos: sua noção de certo e errado corresponde a estados emocionais internos de aprovação ou desaprovação. Como então ele poderia sair de uma dedução subjetiva e chegar a um fato Moral objetivo? Uma intuição é uma inclinação para acreditar – e isso desmonta todo o mérito dela como um filtro irrepreensível para detectar a Verdade substantiva.
“Algo é certo porque é certo ou apenas porque lhe parece certo”? Se a balança que será utilizada para averiguar a precisão do que é certo é algo tão etéreo, permissivo e variável quanto a intuição individual, como separar as Verdades substantivas de nossos medos, desejos e vieses culturais? A intuição nem sempre é clara e perfeita. Muitas vezes, é turva e obscura, e pode só tornar-se confiável a partir de um certo ponto de maturidade intelectual e Moral.
O fato de haver tanta discordância entre as pessoas sobre o que é uma Verdade substantiva sugere que a intuição é um método no mínimo falho por sua imensa versatilidade. Ademais, a ideia de que nosso entendimento de uma proposição auto-evidente é suficiente para acreditar pragmaticamente nela é de um Relativismo tão egocentrado que beira um transtorno psiquiátrico.
No final, para os intuicionistas, é a intuição que justifica o fato Moral, não o entendimento, a Ciência, a Lógica ou a Razão. Entretanto, as intuições Morais das pessoas são demasiadamente discrepantes para serem indicadores respeitáveis das Verdades substantivas: emoções, culturas, contextos temporais e outros fatores internos e externos manipulam nossa consciência com enorme facilidade. Sim, o humano é desonesto, manipula a própria consciência; é ingenuamente sentimental, fantasiosamente ébrio, inconstante em suas vontades e sem grandes tendências para a misericórdia. Traz consigo uma mente perturbada que emprega todas as forças e narrativas possíveis para alinhar suas verdades embutidas à realidade percebida – para então reclamar quando as dores do mundo lhe atropelam, mostrando que o que deveria ter sido feito era exatamente o oposto disso. Pois é a Realidade quem contém as Verdades substantivas e o Universo nunca existiu para satisfazer expectativas humanas.
Nossa voracidade imaginativa é uma piada ruim ou uma má poesia, e aceitar o pluralismo do Intuicionismo é uma tentativa hedonista e covarde de tentar blindar os dogmas filosóficos do escrutínio pela ciência. Pelo menos neste sentido o Naturalismo é um caminho mais desprendido e, porque não dizer, mais objetivo, prático, civilizado e honesto".
_____
Referências e Dicas de Leituras citadas
1. Prichard HA. Does Moral Philosophy Rest on a Mistake? Mind. 1912 Jan; 21(81):21-37.
2. George Edward Moore, Principia Ethica (1902).
3. David Ross, The Right and the Good (1930).
4. Russ Shafer-Landau, Moral Realism: A Defence (2003).
5. Silva MM. Moore e os intuicionistas contra o naturalismo. Ética, 16 de Julho de 2006. https://criticanarede.com/eti_aqa.html . Consultado em 25 de junho de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário