10 novembro 2017

A FUGA COTIDIANA DAS RESPONSABILIDADES


Uma adolescente entra no consultório acompanhada da mãe e o que se desenrola é o mesmo de sempre:

- Quero que o senhor peça um check-up dela.

- Algum motivo especial? Ela faz tratamento para alguma doença? Tireoide, asma, diabetes...

- Não, nada. Só quero fazer os exames de rotina.

Segue-se uma conversa sucinta e objetiva sobre antecedentes médicos da paciente, uma consulta ao prontuário e, enquanto preencho os dados dos exames, a mãe continua:

- E daria também para o senhor encaminhá-la para o psicólogo? Ela anda tendo uns problemas...

- Exatamente por que eu deveria encaminhá-la ao psicólogo?

- Porque ela anda difícil, rebelde, desobediente, às vezes chorosa...

- Não acredita que, antes do acompanhamento com um psicólogo, resolver essas situações de comportamento deveria ser um papel do pai e da mãe?

- Sou sozinha com ela, doutor. E já fiz de tudo para ajudar, mas não tá adiantando.

- Entendo. Mas não acha que levar sua filha ao psicólogo para resolver problemas de conduta é uma forma de transferir para o psicólogo a responsabilidade de criá-la, que deveria ser sua?

- Não.

- A senhora tem carta de motorista?

- Tenho, sim.

- Esse documento se materializou na sua carteira como um passe de mágica ou a senhora teve que estudar para consegui-lo?

- Estudei, fiz auto-escola, foi um sufoco!

- E diploma do ensino médio? A senhora tem?

- Tenho. Não fiz faculdade, mas terminei os estudos.

- Hum. Sou formado há 22 anos e ainda não terminei os meus... Mesmo assim: esse diploma também se materializou na sua gaveta de documentos ou a senhora teve que estudar para consegui-lo?

- Estudei, lógico! Não tem como aparecer um diploma de conclusão de curso sem fazer o curso.

- Certo. No último ano, quantos livros a senhora leu sobre como criar filhos?

- Hãn? – ela se surpreendeu, colocando a bolsa a tiracolo na frente do corpo.

- No último ano, quantos livros a senhora leu sobre como criar filhos?

- Nenhum.

- A senhora por acaso já se interessou em ler algum?

- Ah, há alguns anos até comecei um que não lembro o nome agora, mas larguei antes da metade.

- E a senhora acha mesmo que já fez “de tudo” para tentar entender o comportamento de sua filha e ser um exemplo para o desenvolvimento dela?

- Sinceramente, acho que sim. E não sei mais o que fazer.

- Que tal começar a ler sobre o assunto?

- Não sei... não vejo como isso iria ajudar muita coisa. – ela respondeu, cruzando os braços.

- E a senhora acredita que o espírito santo vai baixar na sua mente e por um milagre lhe iluminar sobre como agir para conduzir a formação da personalidade de sua filha?

- Ah, eu vou tentando do jeito que eu sei.

- Entendo. É o velho método de “tentativa e erro”. Mas, se a senhora está se queixando do comportamento dela, isso diz um bocado sobre o que está acontecendo com mais freqüência nas suas tentativas. E o que está acontecendo são erros.

- Não penso que estou errada.

- Então por que se queixa que as coisas não estão dando certo como gostaria?

- É essa geração...

- A senhora tem lido ou estudado alguma coisa sobre como lidar com essa geração?

- Não tenho tempo pra isso, doutor. Trabalho muito, sou sozinha e ainda mais com uma filha...

- Algumas dessas coisas lhe foram impostas? Ou são frutos de escolhas que a senhora fez até aqui?

- Só quero que o senhor encaminhe minha filha para o psicólogo e pronto. É pedir muito? – ela respondeu, visivelmente irritada e contrariada.

Abaixei a cabeça, peguei o formulário de encaminhamento, preenchi, assinei, carimbei e a dupla se foi. Provavelmente, semana que vem vou receber uma carta da Diretoria de Saúde comunicando outra  “sindicância instaurada sobre atendimento a partir de queixa do usuário”. Mais algumas e logo organizo um livro só delas - a coleção vai aumentando forte e saudável.

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