16 maio 2017

A DOENÇA DO MARTELO


Vez ou outra, sou surpreendido por notícias esdrúxulas de gentes que decidem numa canetada só pela internação de alguém em um leito de UTI (123, 4, 5, 67, 8, 9, 10), sem uma auditoria lúcida sobre a disponibilidade leitos ou um parecer técnico sequer, ameaçando até de cadeia qualquer reles mortal que se oponha à sua determinação suprema.

Sou médico há mais de duas décadas. Perdi a conta do número de vezes em que me vi atendendo com a mínima infraestrutura ou sem QUALQUER  estrutura mesmo, ferindo o próprio Código de Ética da profissão (sim, nós temos um e eu particularmente nutro um grande apreço por ele), que diz que ”é direito do médico recusar-se a exercer sua profissão onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais” (CEM, Cap II, item IV).

Mas o paciente está ali e você está ali. Seu coração exige que você desdobre-se e dê um jeito. Que seus olhos virem pilhas de laringoscópio, que suas mãos transformem o ambu em um respirador pelo tempo que você aguentar, que você finja não sentir dor por saber que o cateterismo ou o centro de trauma que salvaria aquele paciente encontra-se a uma distância que vai além da capacidade dele manter-se vivo.

Enquanto isso ocorre aqui no subterrâneo do Olimpo, nossos 16,5 mil magistrados da caneta mágica despacham prescrições de internações de seus gabinetes.

Eles parecem não perceber que mantêm o país abarrotado de processos sem julgamento enquanto curtem seus 60 dias de férias anuais com abonos de 50%, recebendo mensalmente auxílio moradia de R$ 4.300, auxílio alimentação de R$ 1.600, auxílio transporte de R$ 1.100, auxílio despesas médicas de R$ 2.000 e uns trocados, custeio de 50% dos cursos de Mestrado e Doutorado, e até um inacreditável vale-livro de R$ 13.000 anuais para compra de materiais didáticos que possam auxiliar o magistrado em sua atividade (16).

Eles parecem não perceber o sangue que respinga em nossos sapatos – não nos deles - enquanto usufruem suas regalias, que podem variar de uma comarca (ou zona?) para outra. A maioria desses intocáveis, entocados nos 27 Tribunais de Justiça e nos 27 MPs estaduais, possuiu contracheques que ultrapassam em muito o teto constitucional (que era de R$ 33.000 quando escrevi esse texto): a média de rendimentos de juízes e desembargadores nos Estados é de R$ 41.802 mensais (algo como 260 reais/hora); a de promotores e procuradores de justiça, R$ 40.853 (255 reais/hora). Os presidentes dos Tribunais de Justiça apresentam média ainda maior: R$ 59.992 (374 reais/hora). Os procuradores-gerais de justiça, chefes dos MPs, recebem, também em média, R$ 53.971 (337 reais/hora).

Mas eu não quero salário. Não quero ganhar mais. Sério. Juro que estou satisfeito com o que me é pago, QUANDO é pago, SE é pago. Eu não pediria mais dinheiro. Ou melhor: pediria, mas não para mim.

Sabe a reforma do Fórum de Cuiabá que recebeu R$ 10 milhões?(11). E do Fórum Trabalhista de Florianópolis, que custou R$ 26,3 milhões?(12). A modernização do Fórum Autran Nunes no Ceará, que saiu pela bagatela de R$ 7 milhões, sem incluir outros serviços que ainda serão licitados, como a aquisição de equipamentos para o setor odontológico e do sistema de som e vídeo?(13). A ampliação e reforma do fórum de São Carlos, que recebeu R$ 7,4 milhões?(14). A construção do Fórum de São José dos Campos que saiu pela miudeza de R$ 30 milhões em uma das áreas mais nobres da cidade?(15).

Então. Eu pediria isso ao super-homem da caneta. Não que colocasse ar condicionado central no hospital inteiro, ou que disponibilizasse cadeiras de couro nos consultórios, ou sedãs pretos com motorista, ou fachadas de granito, etc.

Eu pediria mais leitos. Mais equipamentos. Mais remédios. Mais portas, mais sabedoria logística, mais meios para ajudar: a construção de um posto de saúde de 630 m2 custa cerca de R$ 550 mil (22). Para construir e equipar uma UTI de 33 leitos são necessários R$ 8 milhões – cerca de R$ 240.000 por leito (19). A construção e compra de equipamentos para um hospital regional de 150 leitos (sendo 30 de UTI) custa R$ 30 milhões – ou cerca de R$ 200.000 por leito (20, 21). Um leito hospitalar tem condição de rodar cerca de 5 pacientes/mês, e um hospital regional de 150 leitos adicionaria 9.000 internações em um ano àquela região, ajudando milhares de pessoas.

Mas, ao invés de pensar no grande, de pensar no macro, de pensar no conjunto da sociedade, o super-homem desce dos céus envolto em sua capa preta e, ante todos os holofotes, com um só movimento da poderosa esferográfica dourada, resfolegado em sua poltrona multi-ajustável e com a temperatura do gabinete assentada em 21 graus, ele salva o gatinho solitário preso na árvore.

Enquanto os flashes disparam e os heróis retornam para casa em seus Ford Fusion pilotados por Egos vestindo gravata e quepe, o Bom Senso se prostra na esquina, observando os carros com placa especial passarem.

E o Bom Senso olha para a poça d´água suja atropelada em velocidade e desprezo pelo cortejo, e se pergunta:

- No meio dessa surrealidade toda, quem vigia os vigilantes?

3 comentários:

Terezinha lemodls disse...

Maravilhoso.

Hash disse...

Excelente texto...

Anônimo disse...

Texto que descreve muito bem a nossa realidade! Parabéns!