07 outubro 2014

O ATAQUE DA URSA

© Dr. Alessandro Loiola


Uma das coisas que sempre tornavam o trabalho mais divertido no interior eram os vocábulos. Nada do estresse gratuito ou da neurose idiopática das grandes cidades. Nada disso. A rotina consistia em saber o nome do vizinho, comer um bolo de chocolate na praça aos domingos e chegar no posto de saúde bem cedo, no frio da manhã de segunda-feira, para descobrir um bule café cheiroso recém-passado brotando da copa.

- Pois não, seu Josemar, o que está havendo com o senhor hoje?
- Ah, doutor, eu tô tomando direitim os remédio da pressão. – Pega a sacola de plástico surrada e bem atada com um nó caprichoso e dela vai tirando e colocando sobre a mesa uma coleção de cartelas amassadas.
- Esse piquininim aqui ó, o Aécio (AAS, anticoagulante), esse outro Lazico (Lasix, um diurético) e o Colorama (Clorana, outro diurético) pra módi forçar a urina, mas vou falar pro sinhô, num ando me sentino muito bem não.

Sigo o exame enquanto ele desenvolve a história. Pressão ok, ausculta cardíaca ok, mas pulso com frequência levemente aumentada. Pulmões jóia. Bem hidratado, talvez um pouco pálido.
- O pobrema é que já tem uns dias que ando sem apetite e obrando (evacuando) escuro. Acho que a ursa tá atacada.
- Como?
- A ursa, médico.
- ?
E ele aponta para a boca do estômago.
- A ursa.
- Ah.... a úlcera!

A endoscopia mostrou realmente uma ursa atacada. Mordida, até. Uma ulceração havia se formado no começo do duodeno. Provavelmente desencadeada pelo Aécio. Não o político mineiro, mas o comprimidinho amarelo.

O AAS é um dos pequenos milagres da medicina. Diminui a incidência de complicações cardiovasculares em diabéticos, corta em até 50% o risco de morte em pessoas infartadas, além de reduzir a possibilidade de vários tumores (segundo alguns estudos atuais). Apesar disso tudo, o AAS é meio venenoso para os estômagos mais sensíveis. E esse era o caso da ursa do seu Josemar.

As úlceras podem se formar na mucosa do estômago, do intestino delgado ou do esôfago. O sintoma mais comum - uma dor tipo queimação na região do estômago – é causado pelo contato dos ácidos gástricos com a área ulcerada. A dor também pode ser percebida na parte de trás do osso esterno, durar de alguns minutos a várias horas, piorando com o estômago vazio e à noite, aparecendo e desaparecendo espontaneamente.

Outras manifestações das úlceras gastroduodenais incluem vômitos com sangue, fezes escurecidas, náuseas, diminuição do apetite e perda de peso.

Anos atrás, acreditava-se que o estresse e os alimentos muito temperados eram a principal causa das úlceras pépticas. Atualmente, sabe-se que a maioria das úlceras é causada por uma bactéria chamada Helicobacter pylori (H. pylori).

Diversos fatores podem desencadear ou colaborar para a formação das úlceras, tais como: uso regular de medicamentos antiinflamatórios (p.ex.: diclofenaco, aspirina, cetoprofeno, naproxeno e outros), cigarro (a nicotina aumenta o volume e a concentração do suco gástrico), bebidas alcoólicas (o álcool é um irritante para o estômago) e estresse (apesar do estresse por si só não causar úlceras, ele certamente contribui para o seu desenvolvimento).

O diagnóstico da úlcera é bem fácil (lógico, não sou quem vai ser submetido à endoscopia...) e, felizmente, o terapia é bem sucedido em mais de 95% dos casos.

A imensa maioria das úlceras é benigna, mas elas podem complicar com sangramento, perfuração ou obstrução intestinal. Se você sofre de úlcera péptica, procure atendimento médico com mais urgência caso apresente:
  • Fezes com sangue ou muito escurecidas e com odor fétido.
  • Vômitos insistentes ou com sangue.
  • Calafrios ou vertigens.
  • Perda inexplicável de peso.
  • Dor que não melhora com o uso dos remédios habituais.

Além disso, você pode ajudar no tratamento seguindo algumas orientações simples:
  • Não fume e limite o consumo de bebidas alcoólicas, chocolate e café. 
  • Não utilize antiinflamatórios sem a orientação de seu médico de confiança. 
  • Evite alimentos muito temperados, apimentados ou gordurosos, e faça refeições menores porém mais freqüentes. 
  • Se for descansar após uma refeição, repouse em uma posição recostada. Evite deitar de barriga para cima logo após comer.  
  • E retorne ao seu médico de confiança se a ursa voltar a rugir.

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