10 fevereiro 2019

O PROBLEMA DA PSIQUIATRIA E O CARÁTER HUMANO

Imagine alguém que tem um problema grave de visão. Uma miopia de 10 graus, por exemplo. Esta pessoa é disfuncional, não tem soberania sobre sua retina, não consegue navegar direito pelo mundo, tem dificuldade para arrumar emprego e ganhar dinheiro para seu sustento. Ela passa em um Oftalmologista que lhe prescreve um óculos e voila!, seu autopertencimento está de volta. Ela continua míope, porém agora tem autonomia.

Imagine alguém que sofre de diabetes. Os altos níveis de glicose provocam crises de coma por hiperglicemia, a neuropatia nas mãos compromete a coordenação e a vasculopatia nos pés dificulta sua locomoção. Essa pessoa é disfuncional, não tem soberania, não consegue navegar direito pelo mundo, tem dificuldade para arrumar emprego e ganhar dinheiro para seu sustento. Ela passa em um Endocrinologista que lhe prescreve dieta e insulinoterapia e voila!, seu autopertencimento está de volta. Ela continua diabética, porém agora tem autonomia.

Imagine alguém que sofreu um trauma gravíssimo na quinta vértebra torácica e desenvolveu espasmos musculares. As contrações nas pernas ocorrem a qualquer momento, comprometem suas interações, pioram ainda mais sua mobilidade, acentuando sua disfuncionabilidade. Essa pessoa não tem soberania, não consegue navegar direito pelo mundo, tem dificuldade para arrumar emprego e ganhar dinheiro para seu sustento. Ela passa em um Neurocirurgião que lhe prescreve um esquema adequado de neurolépticos e voila!, após algum tempo, as contrações e espasmos desaparecem. Seu autopertencimento está de volta. Ela continua paraplégica, porém agora ganhou mais autonomia.

Imagine alguém que sofre de epilepsia. As crises convulsivas inesperadas, as quedas, os traumas, as fraturas, a insegurança e o estigma a tornam disfuncional. Essa pessoa não tem soberania, não consegue navegar direito pelo mundo, tem dificuldade para arrumar emprego e ganhar dinheiro para seu sustento. Ela passa em um Neurologista que lhe prescreve um esquema adequado de anticonvulsivantes e voila!, após algum tempo, seu autopertencimento está de volta. Ela continua epiléptica, porém agora tem autonomia.

Agora imagine alguém que sofre de um transtorno psiquiátrico como Ansiedade, Depressão, Somatização, Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtorno Bipolar ou Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Essa pessoa não tem soberania, não consegue navegar direito pelo mundo, tem dificuldade para arrumar emprego e ganhar dinheiro para seu sustento. Ela passa em um Psiquiatra que lhe prescreve drogas psicoativas e... nada. Seu autopertencimento raramente volta. Ela continuará portadora do transtorno, porém agora tem outro problema: tornou-se dependente de medicamentos controlados.

Diferentemente do que ocorre em Oftalmologia, Endocrinonologia ou Neurologia, na Psiquiatria os tratamentos medicamentos são considerados uma “arte” dependente de tentativas e erros. Imagine um Cirurgião Geral que a cada caso de apendicite tem que ir “tentando achar” onde se escondeu o apêndice que deve ser retirado – algumas vezes no dedão do pé, outras no pescoço, outras no joelho... isso seria considerado “ciência”?

Apesar de décadas de desenvolvimento e estudos, os tratamentos psiquiátricos não produzem cura e apenas muito raramente produzem alguma melhora ou remissão efetiva (1).

Vejamos os pacientes com “depressão”. Estudos randomizados sugerem fortemente que o uso de antidepressivos não é superior ao uso de placebos no tratamento de transtornos depressivos unipolares (2). Entre os pacientes depressivos que utilizam medicamentos pesados, menos de 30% se livram do transtorno (3), sendo que a maior parte dos indivíduos tratados com medicamentos não apresenta melhora do funcionamento social (4).

Nos casos de transtorno bipolar, o uso de medicamentos não resolve o transtorno e apenas muito raramente produz remissão (5).

Cerca de metade dos pacientes com transtorno do pânico apresentam melhora dos sintomas com o uso de medicamentos psiquiátricos, mas exatamente a mesma quantidade melhora com o uso de comprimidos placebos feitos de açúcar (6). Uma extensão revisão sistemática da literatura realizada recentemente mostrou que de cada 7 portadores de transtorno do pânico tratados com remédios controlados, apenas 1 apresenta melhora dos sintomas (7).

Com relação ao tratamento de pessoas com transtorno de ansiedade, após 3 meses, 46% melhoram apenas com terapia cognitivo comportamental (contra apenas 27% de melhora entre aquelas tratadas apenas com remédios). Após 1 ano, 63% das pessoas submetidas apenas à psicoterapia cognitivo-comportamento referem melhora dos sintomas, versus 38% daquelas tratadas com remédios apenas (8).

Segundo estimativas do Ministério da Saúde, 12% da população brasileira apresenta transtornos de ordem psiquiátrica (9). Isso equivale a cerca de 23 milhões de pessoas – ou praticamente uma Austrália inteira.

Alguns transtornos psiquiátricos – como surtos psicóticos e Esquizofrenia – são doenças realmente, mas a massa dos casos não se classifica exatamente como “doença” dentro do conceito médico. São “doenças” do ponto de vista biopsicossocial: se você acha que está doente e não está, o “achar estar doente” basta para que você receba um diagnóstico.

Seria mais ou menos o mesmo que dizer que, se você acha que Papai Noel ou Saci-Pererê estão atrás da porta, então sua fé na existência destas entidades é prova mais que suficiente de que você está certo e elas estão ali de alguma forma. E esta é uma amostra da insanidade de nossos tempos.

Boa parte dos pacientes nas agendas dos consultórios psiquiátricos não sofre de doenças. E exatamente por isso o que apresentam não é classificado como “doença”, mas como transtorno. Eu iria além disso e, como Thomas Szasz em “O Mito da Doença Mental” (1961), classificaria a imensa maioria desses “transtornos” simplesmente como Fraquezas de Caráter.

Não que pessoas com depressão ou ansiedade ou pânico não tenham Caráter ou tenham um “caráter” ruim: o que elas têm é uma lâmpada incandescente de 20 watts em um ambiente que necessita de uma lâmpada de 100 watts. A luz que produzem não é boa ou ruim: ela é apenas insuficiente. É fraca.

Infelizmente, a maluquice da pós-modernidade faz com que você seja proibido de chamar o negro de negro, o gordo de gordo, o doido de doido, o viciado de viciado, o feio de feio, o manco de manco, o histérico de histérico, e daí em diante. Todos se doem. E todos procuram alguém que sinta pena de suas dores e legitime assim o falso esforço da fraqueza de suas luzes.

O dilema que se apresenta para a Psiquiatra no Brasil e no mundo todo é como fazer esta autocrítica e aceitar que uma parte substancialmente incômoda dos diagnósticos que fazem e dos tratamentos que instituem de pouco valem. Não porque a psiquiatria não seja válida, mas porque resignou-se a tratar com biqueiras de remédios controlados fraquezas de Caráter que nunca foram e nunca serão doenças de fato.

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Fontes:

1. McMahon FJ. Prediction of treatment outcomes in psychiatry—where do we stand ? Dialogues Clin Neurosci. 2014 Dec; 16(4): 455–464.

2. Walsh BT, Seidman SN, Sysko R, Gould M. Placebo response in studies of major depression: variable, substantial, and growing. JAMA. 2002 Apr 10;287(14):1840-7.

3. Trivedi MH et al.  Evaluation of outcomes with citalopram for depression using measurement-based care in STAR*D: implications for clinical practice. Am J Psychiatry. 2006 Jan;163(1):28-40.

4. Fawcett J, Barkin RL. Efficacy issues with antidepressants. J Clin Psychiatry. 1997;58 Suppl 6:32-9.

5. Sachs GS et al. Effectiveness of adjunctive antidepressant treatment for bipolar depression. N Engl J Med. 2007 Apr 26;356(17):1711-22. Epub 2007 Mar 28.

6. Shear MK et al. Pattern of placebo response in panic disorder. Psychopharmacol Bull. 1995;31(2):273-8.

7. Bighelli I et al.  Antidepressants versus placebo for panic disorder in adults. Cochrane Database Syst Rev. 2018 Apr 5;4:CD010676. doi: 10.1002/14651858.CD010676.pub2.

8. Craske MG et al. Treatment for Anxiety Disorders: Efficacy to Effectiveness to Implementation. Behav Res Ther. 2009 Nov; 47(11): 931–937.

9. Governo Brasileiro. Transtornos mentais atingem 23 milhões de pessoas no Brasil. Agência Brasil, 23 de dezembro de 2017. Acessado em http://www.brasil.gov.br/noticias/saude/2010/06/transtornos-mentais-atingem-23-milhoes-de-pessoas-no-brasil









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