Cerca de 30% dos portadores de Epilepsia sofrem com convulsões severas que não respondem a qualquer tratamento medicamentoso, levando uma vida miserável (15). Na década de 1940, neurocirurgiões americanos elaboraram uma alternativa para resolver este martírio: um procedimento cirúrgico paliativo denominado Calosotomia (1). Na Calosotomia, o corpo caloso é parcial ou totalmente seccionado, diminuindo ou eliminando o tráfego de impulsos cerebrais por esta via. Quando bem indicada e realizada de maneira precisa, a operação obtém um bom índice de sucesso no controle das convulsões (2,3). Entretanto, se a Identidade Pessoal depende do funcionamento do cérebro e o cérebro possui “duas partes”, quando separamos estas partes, a Identidade muda? Será que um cérebro dividido ao meio divide também a Identidade ao meio, ocasionando um corpo habitado por uma mente com duas Identidades diferentes?
Alguns pacientes submetidos à Calosotomia desenvolvem transtornos na fala, na visão, na orientação espaço-temporal, na memória de curto prazo e na coordenação motora (em um caso, uma paciente relatou que suas mãos pareciam discordar e competir entre si, tornando atividades tão banais quanto comer um sanduíche uma dança angustiante) (4). Felizmente, na maioria das vezes, estes desarranjos desaparecem com o tempo. Quanto à Identidade Pessoal, nenhuma alteração significativa jamais foi percebida (5,8).
A manutenção da Identidade Pessoal nestes indivíduos pode ser explicada por dois fatores. Primeiro: o corpo caloso certamente é a autoestrada inter-hemisférica mais movimentada, mas não é a única – muitos outros feixes de neurônios cruzam de um lado para o outro nas comissuras anterior, hipocampal, habenular, posterior e supra-óptica. Portanto, quando o corpo caloso é seccionado, o cérebro não é exatamente “dividido ao meio”. Segundo: pesquisas mostraram que, apesar de algumas funções específicas serem privilégio de um ou outro hemisfério, tudo indica que as operações cerebrais funcionem em um esquema de mutirão – por meio da neuroplasticidade, os comandos podem ser processados acionando-se qualquer área capaz de atender às necessidades do momento (13). A função do corpo caloso não é unificar a experiência da consciência entre os hemisférios, mas duplicá-la: a Identidade Pessoal não existe de um ou outro lado, mas em ambos os lados do cérebro, simultaneamente (6).
A história de “essa função ocorre do lado esquerdo; aquela função, do lado direito” é um mito famoso sobre a especialização cerebral, mas 99,9% desta concepção lendária não vai muito além disso – de uma lenda. Como mencionado, a secção do corpo caloso não redunda em duas Identidades Pessoais, mas na continuidade de uma consciência unitária que passa a perceber o mundo utilizando vias de informação mal-integradas (7). Além disso, mesmo removendo-se integralmente um hemisfério cerebral, a Identidade Pessoal não se altera (9,10). Mas aqui surge outra interrogação: se fosse possível pegar o hemisfério cerebral retirado de uma pessoa e transplantá-lo em um Receptor de corpo inteiro (por exemplo: alguém que sofreu morte cerebral, mas, fora isso, apresenta um corpo em boas condições de funcionamento), teríamos dois corpos com a mesma a Identidade Pessoal?
Para os partidários do discernimento científico, a resposta é simples: em um primeiro momento, antes que o paciente Receptor realizasse qualquer input de informação, ele e o Doador compartilhariam uma mesma e exata Identidade Pessoal. Assim que começassem as interações com o ambiente, essas Identidades iniciariam seu processo de divergência.
As experiências jamais são absolutamente idênticas para duas pessoas: ainda que se sentem bem próximas na hora do almoço, cada uma percebe o ambiente a partir de sua própria cadeira. Basta ver o que ocorre com gêmeos univitelinos: até onde os genes demandam, eles se parecem. A partir das fronteiras onde o mundo os influencia, eles destoam progressivamente, desenvolvendo suas próprias Identidades a despeito de serem 100% equivalentes em termos genéticos. Em nível anátomo-fisiológico, continuarão gêmeos; em nível sócio-econômico-cultural, formarão Identidades específicas. Um fenômeno análogo sucederia com nossos pacientes Meio-Cérebro Doador e Meio-Cérebro Receptor: eles começariam como Identidades iguais, mas logo se tornariam Identidades Ímpares, ainda que fundadas a partir de uma mesma base orgânica cerebral.
Todavia, para os adeptos da Identidade Pessoal Permanente – que acreditam que uma alma ou um self místico que ultrapassa a matéria é essencial para o funcionamento do corpo –, a situação se torna um pouco mais complicada.
Após o procedimento, o corpo do Receptor recupera a consciência. Ele acorda, abre os olhos, levanta-se e conversa – mas como isso seria possível, uma vez que a “alma” havia abandonado aquele corpo? Ou será que a “parte imaterial do Ser” ainda habitava o corpo do Receptor mesmo quando seu cérebro foi completamente removido, tendo sido reativada no instante que o meio-cérebro do Doador foi plugado ao sistema? Neste caso, um corpo decapitado ainda possui uma alma? Se positivo, até que ponto podemos ir desmembrando um corpo antes que a alma o abandone de vez? Como demonstrado pelas evidências da neurocirurgia (11,12), cada hemisfério cerebral possui uma cópia inteira de nossas Identidades. De que maneira o Receptor, ao despertar da anestesia, poderia recuperar sua Identidade anterior – jogada fora quando seu cérebro foi integralmente removido?
É óbvio afirmar que um corpo sem cérebro não pode ter atividade cerebral. Até onde vai o entendimento médico e legal, a ausência de atividade cerebral significa “morte”. Se “morte” também equivale à separação da alma do corpo, a partir do momento em que o cérebro do Receptor foi extraído (ou declarado “sem atividade”), seu corpo passou a ser um envelope sem Identidade, uma embalagem vazia, sem self e sem alma. Com o transplante de hemisfério, o “espírito vital” que agora o anima veio na bagagem do meio-cérebro do Doador? Neste caso, a transferência foi de 100% da alma do Doador, 50%, 30%, 10%?
Em um exercício de contemporização, vamos aceitar a suposição de que a “alma imortal” não reside exatamente no cérebro, mas apenas utiliza um corpo viável para se manifestar neste mundo. Considerando que a Identidade Pessoal está sempre mudando de desejos, métodos e valores, sofrendo progressos e decrepitudes Morais ao longo da vida, quais partes desta construção deveriam ser mantidas para que a Identidade do espírito original do paciente Receptor, doravante despido do corpo, corresponda a alguém que ele reconheça como a pessoa que se tornou antes de partir para o além-túmulo? (16)
Finalmente, ao ver o paciente Doador e o paciente Receptor disparando um para cada lado, como reagiria um devoto do sobrenatural se recebesse a ordem: “Pegue aquele que tem a alma inteira!” – atrás de quem ele diria?
Deixo a solução destas dúvidas a cargo dos pensadores que consideram a Metafísica um assunto “válido”. Eu não sou um deles.
*(Parte integrante do livro "Sobre a Natureza e a Crise da Moralidade', em edição).
Referências Bibliográficas:
1. Van Wagenen WP, Herren RY. Surgical division of commissural pathways in the corpus callosum – Relation to spread of an epileptic attack. Archives of Neurology and Psychiatry. 1940; 44:740-9.
2. Wilson DH, Reeves A, Gazzaniga M, Culver C. Cerebral commissurotomy for control of intractable seizures. Neurology. 1977 Aug;27(8):708-15.
3. Asadi-Pooya AA1, Sharan A, Nei M, Sperling MR. Corpus callosotomy. Epilepsy Behav. 2008 Aug;13(2):271-8.
4. Cendes F, Ragazzo PC, Da Costa V, Martins LF. Síndrome de Desconexão Inter-hemisférica após calosotomia total associada à comissurotomia anterior para tratamento de epilepsia resistente - relato de um caso. Arq Neuro-Psiquiat. 1990; 48(3):385-388.
5. Puccetti R. Brain Bisection and Personal Identity. Br J Philos Sci 1973 Dec; 24(4):339-355.
6. Puccetti R. The case for mental duality: Evidence from split-brain data and other considerations. Behavioral and Brain Sciences. 1981 Mar; 4(1):93-99.
7. Pinto Y, de Haan EHF, Lamme VAF. The Split-Brain Phenomenon Revisited: A Single Conscious Agent with Split Perception. Opinion. 2017 Nov; 21(11):835-851.
8. Yun-Jeong Lee et al. Long-Term Outcomes of Hemispheric Disconnection in Pediatric Patients with Intractable Epilepsy. Clin Neurol. 2014 Apr;10(2):101-107.
9. Sean M. Hemispherectomy in the treatment of seizures: a review. Transl Pediatr. 2014 Jul; 3(3): 208–217.
10. Schusse CM, Smith K, Drees C. Outcomes after hemispherectomy in adult patients with intractable epilepsy: institutional experience and systematic review of the literature. J Neurosurg. 2018 Mar;128(3):853-861.
11. van Empelen R et al. Functional consequences of hemispherectomy. Brain. 2004 Sep;127(Pt 9):2071-9.
12. Moosa AN et al. Long-term functional outcomes and their predictors after hemispherectomy in 115 children. Epilepsia. 2013 Oct;54(10):1771-9.
13. Krishnan SS et al. Neuroplasticity in hemispheric syndrome: an interesting case report. Neurol India. 2011 Jul-Aug;59(4):601-4.
14. Mark R. Leary, June Price Tangney. Handbook of Self and Identity. The Guilford Press (2012).
15. Protocolo de Diretrizes Terapêuticas. Epilepsia. Ministério da Saúde (2015). Acessado em http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2016/fevereiro/04/Epilepsia---PCDT-Formatado--.pdf
16. Eric T. Olson. Self: Personal Identity. In Wiliam P. Banks, Encyclopedia of Counsciousness, Vol. 2. Elsevier Academic Press (2009).
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