28 novembro 2022

SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE 2022 NO BRASIL

A história do mundo está recheada de grandes manifestações populares e processos revolucionários não raramente feitos em nome de “devolver o poder ao povo”. Sem embargo, antes de analisarmos o que está ocorrendo no Brasil em 2022, vamos conferir um sumário do que ocorreu nas 10 “rebeliões” mais famosas dos últimos 300 anos: 
 
1. A Revolução Francesa (1789-1799) talvez seja um dos mais famosos e citados deles. As mudanças demográficas (a população da França dobrou entre 1700 e 1800) e sociais (o surgimento de uma inusitada classe média-alta próspera e com acesso à educação), combinadas a um severo sistema de classes (herança dos últimos suspiros do feudalismo), e à desculpa de uma “tirania dos iluminados” para justificar aumentos estrondosos de impostos (a realeza francesa estava atolada em dívidas devido às guerras do século XVIII), fizeram com que milhares de franceses se revoltassem contra a monarquia. No desenrolar dos fatos, nobres e burgueses ricos emigraram, a França declarou guerra contra a Áustria (1792), o nacionalismo atingiu níveis estratosféricos, a monarquia foi abolida, o Rei Luís XVI foi decapitado (1793), seu filho Luís Carlos morreu na prisão e Luís XVIII, irmão mais novo de Luís XVI, fugiu para o exílio. Propriedades privadas foram confiscadas, a oposição à “revolução” foi massacrada pelo Reino do Terror (1793-1894) e mais de 15 mil pessoas foram guilhotinadas, enquanto outras milhares foram presas sem qualquer tipo de processo e morreram nas masmorras.

No calor do alvoroço e da desorganização, Napoleão Bonaparte ascendeu politicamente, dissolveu o Diretório Nacional da recém-nascida república e tornou-se “Primeiro Cônsul”, expandindo o teatro de guerra para Suíça, Malta e Egito. A subida do ditador Napoleão marca o final da Revolução Francesa. Em 1825, depois de quase 40 anos de convulsões contra a “tirania” e a “monarquia” que custaram a vida de dezenas de milhares de cidadãos, os franceses coroaram Luís XVIII como Rei.

2. A Revolução Americana (1776-1783) foi marcada pela rebelião das 13 Colônias na América do Norte contra o domínio britânico. Contando com imenso apoio da França e da Espanha, os revolucionários conquistaram a independência e, no Tratado de Paris de 1783, os Estados Unidos da América nasceram. Ao todo, a Revolução envolveu vários conflitos armados que custaram milhares de vidas: como saldo final, estima-se que 6.800 americanos foram mortos em ação, 6.100 foram feridos e até 20.000 foram feitos prisioneiros. Outros 17.000 morreram como resultado de doenças, incluindo 8.000-12.000 que morreram enquanto prisioneiros de guerra.

3. A Revolução do Haiti (1791-1804) teve como pavio o intricado sistema de classes da ilha. Toussaint L’Ouverture, um ex-escravo e tornado comandante durante a Revolução, recrutou haitianos para lutar contra os “burgueses europeus opressores”  e, perseguindo seus próprios interesses políticos junto aos governos de França e Inglaterra, assumiu a liderança criando um novo Estado e nomeando a si mesmo “Governador-Geral Vitalício”. Usando de força militar, colocou os cidadãos para trabalhar de volta nas lavouras. Em 1801, desejando recuperar o domínio da ilha, Napoleão Bonaparte enviou tropas para o Haiti. Após meses de guerra, Toussaint foi deposto e morreu na prisão em 1803.

O conflito iniciado por Toussaint foi levando adiante por seus tenentes, em especial  Jean-Jacques Dessalines. Aproveitando a atmosfera nacionalista exacerbada e a epidemia de febre amarela que enfraqueceu os franceses, Dessalines venceu e expulsou os europeus, declarou a independência da ilha em 1804 e assumiu o governo com o título de Imperador Jacques I. Para “limpar a nação”, Dessaline ordenou um genocídio dos brancos e oprimiu com extrema violência os revoltosos, morrendo em outubro de 1804 ao tentar suprimir uma rebelião de mulatos. Desde então, o Haiti lida com tensões raciais e índices absurdos de analfabetismo, miséria e tragédia, ostentando um dos piores IDHs do mundo (0,404).

4. A Revolução de Taiping (1850-1864) foi uma das mais importantes revoluções ocorridas na China. Ela brotou do sentimento anti-Qing e levou ao colapso do governo Manchu, no poder desde 1644. O movimento, com fortes inspirações religiosas, fundamentava-se na crença de que seu líder, Hong Xiuquan, era o irmão mais novo de Jesus Cristo. Xiuquan fazia questão de explicitar isso, afirmando que Deus havia lhe dado uma série de visões mostrando sua missão de “salvar e reformar a China”. Uma das bandeiras mais fortes de Xiuquan era a abolição da propriedade privada – algo que atraiu uma quantidade imensa de famintos e trabalhadores simples. A revolta transbordou para uma guerra civil que matou cerca de 20 milhões de pessoas. Em 1851,  Xiuquan proclamou sua dinastia, Taiping Tianguo (“Reino Celestial da Grande Paz”), assumindo o título de Tianwang (“Rei Divino”). As pautas “revolucionárias” foram jogadas de escanteio. Insatisfeito, o povo “elegeu” um novo líder, Zeng Guofan – um oficial do antigo regime Qing. Guofan reconquistou Pequim, Xiuquan cometeu suicídio,  e o velho regime foi restituído. Contudo, a herança cultural de Taiping serviria de combustível para outra Revolução Chinesa, quase 100 anos mais tarde: a Revolução Chinesa de 1949, que mergulhou o país no Socialismo-Comunismo, é considerada uma das maiores tragédias da humanidade. Apenas entre 1959 e 1961, durante o  “grande salto para frente” de Mao Tsé-Tung, mais de 30 milhões de chineses morreram de fome.
5. A Revolução dos Jovens Turcos (1908) consistiu em uma aliança de vários grupos reformistas contra o regime autoritário do sultão otomano Abdülhamid II. Os revolucionários, que defendiam uma economia mais aberta e mais autonomia para os diferentes grupos étnicos do país, terminaram negociando seus princípios para acomodar o Islamismo como religião oficial do novo “estado constitucional” e criaram entre si uma nova elite política – ainda mais desorganizada e ineficiente que elite que haviam destituído. Na confusão, a Turquia perdeu a soberania dos Balcãs para a Bulgária e a Bósnia-Herzegovina para o Império Austro-Húngaro.
6. A Revolução de Outubro na Rússia (1917) tinha como objetivo abolir a tirania czarista e a corrupção endêmica do governo de Nicolau II. Os bolcheviques, liderados por Vladimir Lenin e financiados por grupos estrangeiros com todo tipo de interesse escuso no imenso território russo, realizaram várias missões armadas, conquistaram São Petersburgo (então Capital do Império) e deram início a uma guerra civil que custaria diretamente a vida de 1,5 milhão de combatentes e, indiretamente, 8 milhões de vidas civis até 1922. Maiores informações sobre a tragédia que se abateu sobre a Rússia a partir daí podem ser encontradas, por exemplo, na obra O Livro Negro do Comunismo (1997), cuja leitura recomendo fortemente.
7. A Revolução de Cuba (1953-1959), liderada por Fidel Castro, Raul Castro e Che Guevera, tinha como “objetivo” libertar Cuba das mãos do ditador Fulgêncio Batista. Na prática, os cubanos apenas trocaram uma tirania por outra. Estima-se que, desde 1959, mais de 5.600 cubanos “subservivos” foram executados pelos pelotões de fuzilamento e outros 1.200 foram mortos pelo governo em “assassinatos extrajudiciais”, mas é provável que o número de “eliminados” seja bem maior que isso: algumas fontes sugerem que aproximadamente 50 mil cubanos (ou mais) foram executados pelo governo desde a “revolução”. Até hoje, a “revolução cubana” vem atuando como fonte disseminadora do Socialismo-Comunismo para toda a América Latina.
8. A Revolução Iraniana (1978-1979) teve suas raízes na Revolução Constitucional de 1905-1911, conduzida por clérigos, proprietários de terra, intelectuais e comerciantes. A revolução de 1905-1911 foi abafada pelos interesses internacionais de países como Rússia, Grã-Bretanha e EUA. Em 1921, a Grã-Bretanha ajudou Reza Shah Pahlavi a estabelecer uma monarquia no Irã. Com a ajuda da Rússia, Pahlavi foi exilado em 1941 e seu filho, Mohammad Reza Pahlavi assumiu o trono, dissolveu o parlamento e começou uma série de reformas econômicas e culturais agressivas. Alguns partidos políticos foram criminalizados, protestos foram proibidos e a censura se tornou comum – assim como prisões arbitrárias e sessões de tortura para os “subversivos”.

As condutas do Xá Mohammad Reza Pahlavi fizeram com que o povo se tornasse fascinado pelos discursos populistas do Ayatollah Ruhollah Khomeini, um antigo professor de filosofia em Qom e exilado desde 1964 por posicionar-se contra as reformas de Pahlavi. Milhares de vídeos, áudios e cópias impressas dos discursos de Khomeini foram contrabandeadas para o Irã na década de 1970, conquistando as esperanças de milhares de  cidadãos pobres e desempregados que se sentiam órfãos no vácuo cultural das “modernizações” promovidas por Pahlavi. As tensões, que vinham crescendo geometricamente, eclodiram em 1978-1979: inspirados pela “influência satânica do Ocidente”, os iranianos deram início a uma série de conflitos civis acompanhados de greves nacionais e milhares de pessoas protestando nas ruas. Pahlavi, fragilizado por um câncer, aproveitou a desculpa de umas férias e fugiu do Irã em janeiro de 1979 (ele morreria de causas naturais no Cairo, Egito, em julho de 1980). Em fevereiro de 1979, Khomeini retornou ao país, sendo recebido por milhões de manifestantes. As forças armadas declararam sua “neutralidade” - o que, efetivamente, significava o fim do regime de Pahlavi. Em 1 de abril de 1979, Khomeini declarou o Irã uma República Islâmica, tornando-se seu “líder supremo” em dezembro do mesmo ano. Desde então, a violência, a brutalidade e as violações de direitos humanos no Irã são bem maiores que aquelas observadas durante a dinastia Pahlavi.
10. Finalmente, em 2010, tivemos a Primavera Árabe, que não resultou em melhoras para mais de 95% dos países envolvidos: os índices de pobreza continuaram altos, especialmente nas regiões rurais, e as convulsões generalizadas produziram violências horríveis e duradouras, migrações em massa e acentuação da repressão em muitas partes. Escrevi sobre isso em maiores detalhes aqui.
As 6 coisas principais que observamos em uma parcela da população brasileira hoje consistem em:

1. A presença de interesses internacionais que agem nas sombras, com a desculpa de apoiarem pautas ufanistas quando, na verdade, buscam o domínio sobre monopólios e recursos naturais do Brasil, como ocorreu na Revolução Americana e na Revolução Russa.

2. Uma comoção contra uma “tirania dos iluminados” tendo como combustível um nacionalismo exacerbado, como ocorreu na Revolução Francesa.

3. Uma massa de pessoas desejando resolução de suas próprias misérias por meio de um redentor, como ocorreu na Revolução do Haiti

4. Um forte sentimento messiânico salvacionista, como ocorreu na Revolução de Taiping.

5. A ausência de visão de que movimentos revolucionários em geral produzem governos mais desorganizados e mais ineficientes, como ocorreu na Revolução dos Jovens Turcos e na Primavera Árabe.

6. A ausência de visão de que movimentos revolucionários em geral produzem governos mais violentos e intolerantes, como ocorreu na Revolução Chinesa de 1949, na Revolução de Cuba e na Revolução do Iraniana.

Considerando a altíssima taxa de analfabetismo em nosso povo (que atinge pelo menos 29% dos brasileiros) e o baixíssimo QI médio (que varia entre 83 e 87), não é difícil aceitar que quase nada das 10 revoluções abordadas e nenhum dos 6 pontos anotados acima influencia coisa alguma na tomada de decisões do consciente coletivo: a porção “revoltosa” da população segue movida por sentimentos acalorados e uma coleção de narrativas delirantes sem pautas precisas ou noções exatas de como fazer valer suas demandas. Uma massa de gente assim não apenas está pronta para ser instrumentalizada por qualquer agenda, como será inevitavelmente instrumentalizada – e com consequências danosas, se considerarmos a média da série histórica de outros movimentos similares.

O mantra anestesiante “todo poder emana do povo”, repetido ad nauseam há séculos, sempre serviu de desculpa para o estabelecimento derradeiro das vontades daqueles de quem o poder de fato emana: aristocratas, oligarcas financeiros, líderes religiosos, controladores midiáticos, mega-fundos de investimentos ou qualquer espécie de tirano capaz de juntar ao redor de si os interesses dos demais grupos que exercem o poder ipso facto.

O poder nunca emanou do povo, mas isso não diz tanto com relação ao regime que nos governa quanto diz a respeito das pessoas que serão governadas pelo regime que distraidamente fomentam, uma geração depois da outra.

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