29 março 2016

Uma dica para escrever o Livro da Sua Vida


© Alessandro Loiola
 
 
 
Escrever é um trabalho árduo e solitário. O que fazer com o personagem?, como aprofundar-se no caráter daquele outro?, a costura do roteiro, os cenários descritos, as intrigas construídas, os dilemas engendrados... e, depois de tudo orgulhosa e alegremente pronto, é hora de passar a tesoura. Sim, passar a tesoura sem dó nem piedade. Porque escrever é, antes de tudo, editar-se.
 
O crítico literário Arthur Quiller-Couch resumiu bem essa tarefa sofrida de edição em um lema que todo escritor deve trazer tatuado em suas retinas: "Murder your darlings". Mate seus queridos. Seja cruel com seu enredo. Apague suas passagens poéticas, assassine as virtudes preferidas, delete parágrafos inteiros. Jogue a polpa fora e mastigue a semente.
 
Excelentes livros saíram de rascunhos de merda. Por isso, não desanime. Dê um tempo ao seu texto, cure-o como um bom queijo ou uma garrafa de Malbec, permita que envelheça um pouco. E então revisite-o com isenção.
 
O mesmo princípio poderia (e deveria) ser aplicado às nossas certezas todas. Que tal maturá-las antes de anunciá-las aos olhos de seus amigos e conhecidos? As verdades que mais lhe agradam podem ser apenas um truque de sua mente para justificar as escolhas imbecis que você andou fazendo por anos a fio.
 
Ao escrever o livro de sua vida, observe regularmente os capítulos de uma distância segura. Questione-se sempre! - e quanto mais crítico você se mostrar em relação à autoridade de suas ideias, mais livre será. E tanto mais poderá confiar na clareza de si mesmo.

28 março 2016

Por que deveríamos visitar cemitérios?

© Alessandro Loiola


 
 
Essa é uma Ideia estranha, não? Visitar cemitérios... por que diabos você se daria ao trabalho de algo assim?

Muitos países não-latinos têm cemitérios amplos, abertos, que convidam à visitação. Nós, latinos sulamericanos, cercamo-los com muros bem altos, talvez por medo que alguma alma pule na calçada e tente arrastar você para o submundo. Não tenho notícia de que algo assim tenha ocorrido, mas prevenir é como caldo de galinha, certo? Que mal faz... Então fazemos muros.

Mas existem outros cemitérios. Muitos. Os cemitérios das ideias que não vingaram, das certezas que abandonamos, dos relacionamentos naufragados, das escolhas que nos foderam, dos empreendimentos que não deram certo. E esses cemitérios jazem no esquecimento, a despeito das enormes lições contidas lá.

Diz a lenda que Thomas Edison tentou 1000 vezes até encontrar uma combinação de componentes para o filamento incandescente capaz de produzir a lâmpada como a conhecemos. Quando lhe pergutaram se havia valido à pena 1000 tentativas para acertar somente uma, ele respondeu: "Mas eu não aprendi apenas COMO FAZER uma lâmpada. Eu agora também sei 999 maneiras de não fazê-la". Edison conhecia o valor dos cemitérios.

Aprendemos por "tentativa e erro", é o que me disseram a vida toda. Se aprendêssemos por "tentativa e acerto", teríamos um mundo mais prático e eficiente, mas certamente bem menos poético. O método "tentativa e erro" preenche o mundo com tumbas de equívocos. Existem sabedorias incríveis enterradas nessas lápides, se você souber avaliá-las. Basta caminhar por entre elas de olhos e ouvidos abertos.

Você tem visitado seus cemitérios?

Filosofia de Vendas BO: Não Seja Mais um Usuário.


© Alessandro Loiola 

 

Entre os profissionais de saúde – e principalmente no meio da indústria farmacêutica - o termo “BO” costuma ser utilizado para se referir a remédios que não fazem qualquer mal tampouco fazem qualquer bem, indicados para acalmar ansiedades, nutrir falsas esperanças e encher um pouco mais os bolsos dos seus fabricantes. 

Pois atenção: o assunto “BO” (que eu confortavelmente traduziria BO para Boa para Otário) vai muito além dos comprimidos no balcão da farmácia. 


A Filosofia de Vendas BO

A maioria das pessoas acredita que informações sem fundamento são fáceis de perceber, mas esta é uma certeza traiçoeira. A Filosofia de Vendas BO se utiliza da ciência – melhor dizendo, de suas próprias versões da ciência – para vender ideias e produtos. Seus promotores são “cientistas à frente de seu tempo”, “pesquisadores de ponta”, que desenvolvem técnicas inovadoras de acupuntura, alimentos orgânicos, análises de cabelo, megavitaminas, fórmulas antiestresse, chás para diminuir o colesterol, palmilhas magnéticas, dietas que curam AIDS, eliminadores de manchas e estrias, ativadores da imunidade, tônicos capilares milagrosos, purificadores ionizantes de água, panelas que aumentam a quantidade de nutrientes da comida, alimentos especiais para equilibrar a química do corpo, etc.

Nestes casos, o que vende não é a qualidade do produto, mas a capacidade de influenciar a “audiência” (leia-se clientes). Campanhas BO´s atingem as pessoas emocionalmente. Boa parte dos produtos e abordagens jamais passou por qualquer experimento científico sério que comprovasse sua eficácia.

Desde a antiguidade, as pessoas vêm perseguindo quatro porções mágicas diferentes: do amor, da fonte da juventude, da cura de todos os males e a superpílula atlética. Os BO´s em geral se encaixam em uma dessas categorias de desejo. O que antes eram chifres de unicórnio, elixires, unguentos e amuletos, viraram vitaminas, pirâmides, extratos de ervas, florais, aromas, cristais, cromoterapia e muitos outros produtos disfarçados de ciência. Atletas vendem cereais que nos transformarão em campeões. Suplementos de vitaminas devem ser utilizados por todo mundo, sem contraindicações. E por aí vai.


Identificando uma abordagem BO

É possível identificar 10 linhas gerais da Filosofia de Vendas BO. Elas podem ocorrer isoladas ou em combinações criativas. Conhecê-las é importante para avaliar até onde determinada informação baseia-se em ciência de verdade ou em falcatruas vazias.

1. Testemunhos: experiências pessoais não são suficientes para comprovar a eficácia de um determinado medicamento ou produto. É perigoso acreditar que, apesar de um remédio para uma determinada doença grave não ter funcionado em diversas outras pessoas, ainda assim – e estranhamente - existe uma boa chance dele funcionar para um indivíduo isolado. A maior parte das pessoas que acredita ter obtido sucesso com o uso de uma terapia não-ortodoxa gosta de divulgar sua história – pessoas amam serem ouvidas. As “testemunhas” em geral são motivadas por um desejo sincero de ajudar terceiros, mas raramente atentam para o fato de como é difícil avaliar um produto com base em experiências pessoais. Tampouco lhes passa pela cabeça a possibilidade da melhora ter sido uma mera coincidência e não resultado do tratamento.

2. Objetivos Fantasmas: muitas campanhas dizem algo como “gostaria de se sentir melhor e ter uma aparência mais saudável? Experimente o produto X e tenha mais saúde, paz de espírito e vida sexual mais ativa! Você verá a diferença em poucas semanas!”. As pessoas normalmente possuem altos e baixos e apenas a consciência de estar tomando uma decisão positiva já pode gerar bem-estar sem que isto tenha qualquer relação direta com o produto. Outros BO´s não prometem curar o problema em si, mas “desintoxicar o corpo” ou “auxiliar o organismo no processo de cura”, ainda que não seja possível avaliar cientificamente os mecanismos envolvidos na obtenção destes incríveis efeitos.

3. Doença Inventada: praticamente todo mundo uma vez ou outra apresenta sintomas como dores leves, reações ao desgaste do dia-a-dia, variações hormonais, efeitos da idade, etc. Rotular estes altos e baixos absolutamente naturais como manifestações de alguma doença permite aos promotores da Filosofia de Vendas BO oferecer um produto diferente para cada situação da vida.

4. Palavras Coringa: nesta variação da abordagem “Doença Inventada”, os vendedores sugerem que a ocorrência de um ou mais itens de uma interminável lista de sinais e sintomas podem ser evidências da necessidade imediata de utilizar determinada vitamina, dieta, calçado magnético, energizador de ambiente e outros.

5. Empurroterapia: muitos balconistas de farmácia são mestres em “empurroterapia”, repassando o remédio que lhes dá a maior porcentagem de participação na venda. E alguns ainda dizem que “se você não usar, várias coisas terríveis podem lhe acontecer” e dão seu testemunho. Alguns dias mais tarde, passando pela mesma farmácia, lhe perguntam se algumas daquelas coisas terríveis – e estatisticamente improváveis de acontecer – ocorreram. Com a negativa, eles comemoram o sucesso com você. “Vê? Agora imagina se você não tivesse feito uso do produto X em tempo...”.

6. Estimulando o Livre-arbítrio: a ideia de tomar decisões satisfaz o ego da maioria das pessoas, tornando comuns BO´s que se autodenominam “alternativos”. Frequentemente, esses produtos recomendam que a pessoa mude de estilo de vida ou associe a terapia “alternativa” a um tratamento tradicional. Quando os benefícios surgem, os BO´s então procuram ficar com todos os créditos. Será que apenas as mudanças no estilo de vida ou o uso isolado do tratamento tradicional teriam surtido o mesmo efeito, sem necessidade do BO? Para os fabricantes, obviamente não: os lucros diminuiriam.

7. Teoria da Culpabilidade: muitos tratamentos alternativos se apoiam na “Teoria da Culpabilidade”. Por exemplo, ao tratarem de pacientes com câncer, se os efeitos não são esperados, isso ocorreu pois o “sistema imune” já estava demasiadamente prejudicado pela radioterapia e/ou quimioterapia, o que impediu a ação do BO.

8. Teoria da Conspiração: nesta sandice, Governo, Associações Médicas, Laboratórios farmacêuticos e outros setores estariam todos envolvidos em uma conspiração monstruosa para perpetuação das doenças. É uma tolice sem tamanho. Entre outras coisas, médicos não prosperam mantendo as pessoas doentes, mas curando-as. Vários BO´s se intitulam vítimas de “conflitos filosóficos” com os padrões médico-científicos vigentes, quando deveriam simplesmente admitir que oferecem métodos não-comprovados ou mesmo fraudulentos no lugar de abordagens tradicionais, eficazes e comprovadas. A Filosofia de Vendas BO é especialista em afirmar que trabalhos científicos mostrando a ineficácia de seus produtos tiveram os resultados “comprados” por grandes companhias farmacêuticas.

9. Associação Cultural: para atingir a população-alvo, associa-se o produto a alguma crença popular. Um bom exemplo são os frascos com água do Rio Jordão, areia do Muro das Lamentações, cristais, joias, imagens ou medalhinhas abençoadas e congêneres.

10.  Inspirando Confiança: uma vez que o foco não são os resultados em si, mas a alimentação de esperanças – ainda que falsas -, a maioria dos BO´s se faz acompanhar de uma publicidade recheada de confiança. São comuns frases do tipo “efeito comprovado em mais de 100 estudos realizados em diversos países”, mas nunca se consegue saber exatamente quais estudos, realizados por quem e em quais países. Além disso, mesmo quando os promotores de vendas de BO´s admitem que determinado método ainda necessita maiores investigações científicas, eles procuram minimizar este dado e maximizar a autoconfiança nos resultados positivos – e se esforçam para que este entusiasmo contagie os consumidores. "A cada dia a ciência está comprovando que...", diz o sujeito de terno e gravata segurando um frasco de qualquer coisa.


Sucesso nas vendas, problemas na Filosofia

No quesito “satisfação do cliente”, a arte ganha da ciência em quase todos os níveis sócio-econômicos. Apesar da Filosofia de Vendas BO oferecer um certo – e muitas vezes valioso - apoio psicológico aos pacientes, elas também favorecem o surgimento de uma confiança supervalorizada no vendedor e em seu produto. E este é um ponto perigoso.

A possibilidade de atrair a vítima com promessas infundadas, afastando-a do tratamento realmente eficaz, é um aspecto cruel. Mesmo quando a morte é inevitável, falsas promessas podem produzir danos importantes. Vários especialistas que analisam o processo de morte mostraram que, apesar da reação inicial de choque e incredulidade, os pacientes terminais se adaptam razoavelmente bem à situação desde que não se sintam abandonados. As pessoas que aceitam a inevitabilidade do seu destino não apenas morrem psicologicamente preparadas mas também podem colocar assuntos práticos em ordem. Por outro lado, aquelas que se apoiam em BO´s, podem se perder em atitudes de negação. Gastam inutilmente não apenas recursos financeiros, mas também o pouco tempo que lhes resta.

Os BO´s gostam de afirmar que “a ciência não possui todas as respostas”. Isto é verdade, mas a ciência jamais se propôs a tê-las. Ciência é um processo racional e responsável que pode responder a várias perguntas, mas não é perfeita e tem sua cota de insucessos. A bem da verdade, estes mesmos insucessos refletem um elemento-chave da Ciência: sua disponibilidade em testar seus próprios métodos e crenças, abandonando o que se mostra ineficaz.

Os verdadeiros cientistas não possuem qualquer comprometimento filosófico com um tratamento em particular, mas apenas com o desenvolvimento e utilização de métodos seguros e eficazes para um determinado propósito. Quando um remédio ou abordagem BO não consegue passar por um teste científico, seus proponentes simplesmente rejeitam os resultados e se comportam de maneira similar aos mágicos no circo, retirando a atenção do público daquilo que realmente interessa. Quando confrontada com críticas fundamentadas, a Filosofia de Vendas BO simplesmente muda de tópico, incapaz de responder perguntas simples, tais como: de que maneira foi comprovada a eficácia do produto? Em que revista foram publicados os resultados dos estudos científicos comprobatórios? Quais as possíveis contraindicações e efeitos adversos daquele tratamento?.


Como evitar a Filosofia de Vendas BO ? 

Infelizmente, as abordagens BO´s não possuem uma tarja de advertência no frasco ou vêm acompanhadas de avisos do Ministério da Saúde. Além disso, alguns produtos realmente eficazes em um determinado tratamento podem ser utilizados como BO´s em outros – p.ex., remédios comprovadamente úteis para controle do tabagismo são vendidos em associação a suplementos vitamínicos suspeitos.


A melhor medida é desconfiar sempre. A Natureza não dá saltos e soluções milagrosas devem ser avaliadas com boa dose de reserva.


Não pretendo desvalorizar experimentos e alternativas honestas direcionadas para a diminuição do sofrimento alheio, mas, antes, ilustrar como os BO´s se promovem e prosseguem iludindo o grande público, algumas vezes com consequências bem ruins.

 

24 março 2016

Reclamadores Crônicos

© Alessandro Loiola


Sabe o tal sujeito que se queixa da falta de chuva no dia ensolarado e da falta de um solzinho no dia chuvoso? Que a comida estava muito quente ou muito fria? Que a esposa ou o marido ou o emprego lhes causa tédio demais ou lhes dá nos nervos demais? Pois bem, ele (ou ela) é um digno representante da famigerada tribo dos Reclamadores Crônicos - uma subespécie do Homo sapiens chatus aporrinhensis.

É difícil concordar com o raciocínio destes seres que reclamam sem parar. Vivemos as conseqüências de nossas próprias opções. Alguém está obrigando você a viver nesta cidade, neste país, naquele emprego, com aquela pessoa ou com este exato estado de humor? Não. Tudo é fruto de suas escolhas. Podem não ser escolhas fáceis, mas ainda assim são escolhas. E acredite: é você quem decide.

Apesar dos dissabores, os Reclamadores Crônicos parecem seguir uma marcha inexorável em direção ao domínio do mundo. Como estão conseguindo esta proeza? Eu acredito que 3 teorias do comportamento podem responder este mistério:


Teoria um: a Lei de Murphy

“Se alguma coisa pode dar errado, dará”. Quase sempre, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível. Este raciocínio típico possui muitos adeptos e é como um batismo para os novos candidatos a Reclamadores Crônicos.

Alguns exemplos práticos da Lei de Murphy: as peças que exigem maior manutenção quase sempre estão no local mais inacessível do aparelho. Ao vasculhar uma gaveta, você só encontra aquilo que não está procurando.

Quando o telefone toca, se você tem caneta, não tem papel. Se tem papel, não tem caneta. Quando finalmente pega ambos, o telefone se cala. E se você jogar fora alguma coisa que tem guardada há muito, muito tempo, vai precisar dela logo, logo.

Um Reclamador Crônico que se preze traz em seus genes uma mensagem clara da Lei de Murphy: a Natureza opera a favor da falha. E ele mesmo, o Reclamador Crônico, sente-se uma prova viva disso.


Teoria dois: o código dos metais

Este nobre código de comportamento é constituído por 4 regras consecutivas, encabeçadas pela Regra de Ouro: “Faz aos outros o mesmo que desejas que te façam”.

O risco de falências judiciais associadas à prática da Regra de Ouro resultou em uma adaptação do código mais fácil de ser seguida, chamada Regra de Prata: “Não faça aos outros o que não desejas que te façam”.

Como tudo que foi mudado pode ser melhorado para pior, à Regra de Prata seguiu-se a Regra de Bronze: “Faz aos outros o que te fazem”.

Porém, a versão mais atual do Código de Conduta dos Metais, editada pelos Reclamadores Crônicos, recebeu nome de Regra de Ferro. Este exemplo de puro altruísmo humano prega o seguinte: “Faz aos outros o que quiseres, antes que te façam o mesmo!”. Simplesmente magnânimo.


Teoria três: o princípio dos cegos e o elefante

A Lei de Murphy explica como os Reclamadores Crônicos nascem (negativismo), e o Código dos Metais elucida como eles se multiplicam (por vingança). Mas por que eles não melhoram com o tempo? A explicação pode estar no Princípio dos Cegos e o Elefante, derivado da fábula indiana de mesmo nome.

Na fábula, alguns cegos decidiram aprender o que era um elefante tocando partes diferentes do animal. Um tocou o lado do corpo do elefante e o descreveu como uma parede. Outro tocou a tromba, e ficou convencido de que o animal era como uma serpente. O que tocou o joelho disse tratar-se de uma árvore. O que tocou as nádegas disse que aquilo tudo não passava de uma imensa merd… bem, você captou a idéia.

Mais tarde, ao se reunirem, os cegos se envolveram em uma discussão acalorada. Cada um tinha sua própria versão do bicho, mas nenhuma delas parecia se encaixar com a do outro. Embora estivessem individualmente certos, a intolerância em compreender a verdade do próximo impedia a todos de entender o que era realmente o paquiderme.

Assim como os cegos e o elefante, os Reclamadores Crônicos palpam um fio do cabelo do nariz da vida e aquilo lhes basta para conceber uma sequência infinita de dificuldades e tristezas. Apegados às suas meias-verdades, eles não entendem que nossas opiniões mais fervorosas são apenas construções frágeis que criam a ilusão de que sabemos alguma coisa – quando não sabemos de coisa alguma.

Juntamente com a existência, você recebeu de presente duas possibilidades: desperdiçar primaveras reclamando de cada novo detalhe que a vida lhe oferecer, ou maravilhar-se continuamente com a imprevisibilidade de cada minuto. A escolha é simples – e sua apenas. Faça-a da melhor maneira possível. Só não venha reclamar depois no meu ouvido.

22 março 2016

O Desafio da Lista


(c) Alessandro Loiola



Em um exercício de sintonia conjugal, fui desafiado pela minha esposa para listar seus pontos positivos. Desafio aceito. Vamos lá, riqueza, seguinte:


1. Você é inteligente. E esforça-se de modo genuíno para ampliar sua inteligência. Admiro imensamente isso. Mesmo. E tenho orgulho por saber que escolhi como companheira alguém com uma característica tão notável.


2. Você é lúcida. Sem dúvida quanto a isso. Tem uma boa noção da realidade. É uma noção ainda restrita, mas que se expandirá - apenas uma questão de livros e algumas vivências. O tempo se incumbirá de ambos.


3. Você é responsável. Disciplinadamente responsável, decidida, com objetivos e planos bem definidos. Basta olhar a evolução do currículo de sua vida para perceber isso. E essa peculiaridade faz parte da natureza de cada célula sua. Pelo que já vivi até aqui, posso lhe dizer que Isso é muito, muito raro.


4. Você é capaz de mudar de verdade. Algo absolutamente notável em nossa espécie. Eu invejo isso em você.


5. Você é discreta de um modo elegante e charmoso. Polida, educada, refinada, do modo de pensar ao modo de se vestir.


6. Você é divertida. Gostaria que fosse mais, que se soltasse com mais espontaneidade e deixasse fluir isso de dentro de você. Algumas vezes, você parece se policiar em demasia e penso que isso pode te fazer sofrer um pouco. Talvez você tenha vontade de ser mais livre e mais desprendida, mas âncoras sociais-morais internas te seguram ainda. Também acredito que isso diminuirá com o tempo e você - cedo ou tarde - poderá viver toda a luz dessa alegria que carrega. Gostaria de estar ao seu lado quando esses dias chegarem.


7. Você sabe se articular, espanando as nuvens de problemas enquanto foca nos resultados futuros. Isso exige um nível de abstração sábia que muitas pessoas não adquirem mesmo após várias décadas de vida. E você nem tem tantas décadas assim.


8. Você se preocupa afetuosamente com os outros. Com seus filhos, seus pais, as pessoas que gosta.


9. Você não tem inveja de qualquer coisa ou pessoa. Percebo isso em cada conversa que temos e em como você descreve o mundo à sua volta.


10. Você sabe como controlar sua insegurança ao invés de deixar-se dominar por ela. O medo natural existe, mas você o restringe com ferramentas de lógica (algo impressionante no sexo feminino!) e impede que ele incapacite seu raciocínio.


11. Você é leal, ainda que isso custe seu próprio bem estar algumas vezes.


12. Você é sincera. Quando conversamos, você comunica seus sentimentos com honestidade e transparência desconcertantes. Neste ponto, estou muito atrás do seu nível de percepção das emoções e eficiência em colocá-las na mesa.


13. Você é destemida (apesar de um certo medo inato de aranhas...)


14. Você é persistente de um modo organizado. E isso exige saber bem o que se quer. E só quem sabe QUEM é pode saber O QUE quer.


15. Você é sensível, mas não de um modo afetado. Com frequência, vejo seu lado lúcido lutar contra essa doçura, e lamento um pouco por isso. Sensibilidade não é fraqueza, e torço para que daqui alguns anos você se sinta mais à vontade para exteriorizar isso com mais frequência nos seus círculos de intimidade. Novamente, gostaria de estar ao seu lado quando esses dias chegarem.

21 março 2016

Deixa eu te contar como são os homens...



© Alessandro Loiola



Livros e artigos sobre “o que pensam as mulheres?” ou “o que querem as mulheres?” existem às dezenas de milhares de bilhões em toda parte. É só abrir uma revista ou jornal qualquer e lá estará o famigerado texto.

O que nos leva a uma constatação: não admira que algumas mulheres se queixem que seus relacionamentos hétero não vão bem. Antes de ler páginas sobre “como o cara perfeito deve se portar” ou preencher aquele Quiz “descubra se ele te trai”, que tal descobrir COMO DE FATO OS HOMENS SÃO?

Afinal de contas, talvez a raiz do problema não esteja exatamente em você ou nele, mas na versão feminina do estereótipo masculino que você carrega, mais um Christian Grey preparado pela sua cabeça... – por sinal, um personagem que para nós, homens com padrões de homem, é um puta de um boiola inseguro.

Responda sinceramente: quando foi que você se preocupou em analisar a anatomia emocional do sexo oposto sem colocar seu próprio umbigo no foco? Pra ajudar esta tarefa – que é bem simples, diga-se de passagem, pois sentimentalmente os homens são mesmo bem menos complicados que as mulheres -, eu preparei uma lista de DEZ ITENS sobre como nós homens somos: 


1. Homens falam sobre seus sentimentos. É verdade, nós falamos. Por mais estoica e espartana que tenha sido nossa criação, o território dos sentimentos existe e você pode explorá-lo utilizando alguns subterfúgios.

Em geral, não nos sentimentos confortáveis com investidas diretas nessa área, então que tal tangenciar as emoções perguntando coisas do tipo “o que você faria em uma viagem romântica de uma semana?” ou “o que achou de mim a primeira vez que me viu?”. As respostas irão lhe revelar como ele se sente e talvez vocês se sintam mais conectados e à vontade a partir daí.


2. Homens dizem “Eu Te Amo” com Ações. Sabe aquela torneira que estava pingando? O lixo que precisava ser levado para fora? A louça que ansiava ser lavada? Os pneus do seu carro que precisavam de alinhamento? A compra no supermercado? O buscar e levar das crianças? O abrir portas? O carregar malas? Você pode até se defender dizendo que "não passa de obrigação dele!", mas o fato é qualquer ação que torne o mundo de sua amada mais leve e confortável, na cabeça de um homem, equivale a um enorme, sonoro, estrondoso Eu Te Amo.


3. Homens ouvem. Só porque o cara não fica dizendo “Humrum” ou “Tendi” enquanto você desfila seu longo monólogo de angústias pré-menstruais, isso não significa que ele não está lhe ouvindo. A maioria de nós prefere ouvir e pensar sobre o que está sendo dito em absoluto silêncio. Homens amam silêncio – mas isso não quer dizer que odeiam ouvir você tagarelar.


4. Atividades compartilhadas formam vínculos. Homens estreitam seus laços de amizade e afeto realizando e compartilhando atividades – bem mais do que conversando sobre ideias e sentimentos. Considere isso um traço do genoma Neandertal. Ficamos mais satisfeitos, aumentamos nossa confiança e nos dedicamos mais quando dividimos uma atividade qualquer, podendo ser uma partida de tênis, uma caminhada, uma remada de caiaque ou uma rodada do bom e velho sexo.


5. Homens precisam de um tempo para eles mesmos. “Ué, mas você não acabou de falar que temos que fazer coisas juntos, poha?”. Sim, querida, eu falei. Mas homens precisam de um tempo para eles mesmos. Pode ser fazendo jardinagem, surfando, tocando violão, malhando na academia, andando de moto, o que for. Encoraje-o para que ele tenha momentos assim. Quanto mais espaço ele tiver para desenvolver sua individualidade, mais dela ele terá para entregar a você e ao relacionamento.


6. Homens “deixam pra lá” mais rápido que as mulheres. Mulheres tendem a reviver suas experiências negativas em círculos mais longos e repetitivos. São espirais enooormes de estresse, ansiedade, tristeza, etc, que vêm e vão. Em contrapartida, os homens tendem a seguir em frente com mais rapidez e pragmatismo. Então, quando você for recuperar o fio daquela discussão da semana retrasada, requentando suas mágoas, não ache ruim se ele simplesmente disser “... Mas eu achei que aquilo já tinha sido resolvido...”. Na cabeça dele, tinha sido mesmo.


7. Homens não captam pistas sutis. Já viu algum treinador de futebol solfejando um soneto pro seu beque estraçalhar o atacante do outro time? Ou algum sargento fazendo discretos devaneios com uma luva como forma de instrução para qual lado a tropa deve marchar? Homens não são sutis. Nós não captamos aquela levantada de sobrancelha que você treinou tanto, não percebemos o cabelo cortado e também não interpretamos corretamente sua cara triste. Então, se você quer que seu homem entenda uma mensagem, pelamordedeus, seja direta e diga na lata.


8. Homens respondem ao Apreço. Mostrar apreço por algo que seu homem fez é uma ferramenta quase milagrosa. Homens respondem muito bem a demonstrações de reconhecimento e aprovação.

Uma dica pra você testar isso: segure aquela cara barbuda que ainda não escovou os dentes, olhe nos olhos dele e diga-lhe com doçura como você o acha competente e aprecia o cuidado que ele tem com você / a casa / as crianças, etc, e veja se estou errado. Eu não estou.


9. Homens pensam em sexo. Pra cacete. Graaande segredo, não? A imensa maioria dos homens com menos de 60 anos pensa em sexo pelo menos uma vez ao dia – contra apenas 25% das mulheres. E isso não é tudo: homens constroem fantasias sexuais duas vezes mais que as mulheres, e também pensam muito mais sobre sexo casual e aventuras sexuais. Pra seu alívio, deixa te dizer: “pensam” não significa “fazem”, ok? Ou pelo menos, quase sempre.

O sexo tem um peso muito significativo para um homem. Nós temos ansiedade quanto à performance e nos preocupamos se não estamos lhe dando prazer suficiente. A questão de proporcionar prazer à parceira é justamente uma das peças que tornam os relacionamentos longos mais satisfatórios para nós: tivemos tempo para aprender suas manias e segredos, e agora sabemos quando é cócega e quando é gozo. Um homem sabe que irá sentir-se bem quando você estiver bem.

Ainda que sexo seja importante para nós, fique atenta para dois detalhes: também amamos quando vocês tomam a iniciativa. Ser perseguido por uma fêmea com volúpia nos olhos e fogo nas veias atiça qualquer libido masculina. Não sinta vergonha de dizer para ele “Hoje sou eu quem quer!”. Tomar a iniciativa uma vez ou outra certamente irá aumentar o nível de satisfação de ambos.

Segundo detalhe: apesar da fixação por sexo, algumas vezes não estaremos a fim. Não é o apocalipse, mas acontece. Pressões do trabalho, preocupações financeiras, problemas familiares... o estresse detona a libido. Detona mesmo. Então se ele disser “Hoje não”, não significa que ele perdeu completamente o interesse por você e está prestes a largar tudo para virar um eremita no Tibete. Ele está dizendo apenas “hoje não”. Amanhã é outro dia. Volte ao item 6, se quiser.


10. Homens tendem a mudar o foco quando suas necessidades não são satisfeitas.  Se o cara não se sente amado e confortavelmente acolhido em uma relação, ele irá buscar satisfação em algum outro lugar. Ele pode se enterrar no trabalho, ou desenvolver fixação por esportes, ou videogames, ou pornografia online, ou traições no mundo real. A saída para evitar equívocos assim está, como sempre, no diálogo, que deve ser forte, franco e frequente.




19 março 2016

O Fazendeiro, a Política, o Galo Novo e o Galo Velho


© Alessandro Loiola


Um conhecido muito querido (mora de verdade no meu coração), escreve: "Não vejo a hora dessa crise política e econômica passar. Não aguento mais lidar com esse monte de cientista político que atua como papagaio de pirata do William Bonner. Eu quero voltar a fazer a oposição que sempre fiz ao Governo Federal. Uma oposição de esquerda e que respeita a Democracia!"

Certo. Mas daí um dia você cresce, amadurece, pára de fazer Oposição de Esquerda e decide que é hora de propor Soluções de Prosperidade, não importa de que lado elas estejam.

Mas há de se perdoar a juventude. Estão aqui há menos tempo que nós e ainda não aprenderam quantas casas existem no tabuleiro do mundo.  E uma história ilustra bem isso:

Diz-se que um fazendeiro, preocupado com suas galinhas, resolveu comprar um galo novo - o outro estava velho e parecia não estar dando muito conta do recado. Quem sabe a juventude de um bom galo macho daria um ânimo novo à granja, aumentando a produção.

Chegando ao galinheiro, o galo novo desfilou com pompa e glória, um galo jovem altivo, esporões novos, penas viçosas. O galo velho, acabrunhado, propôs-lhe um acordo:

- Veja só, estou aqui há anos e me sentiria péssimo em simplesmente deixar meu posto de galo-chefe assim, sem eira nem beira.
- Seu tempo acabou, velhote. - disse o jovem, sorrindo e acenando para a plateia de galinhas suspirosas.
- Eu sei, eu sei, meu filho. Nem me fale... mas, pelo menos, em respeito às minhas penas brancas e até para inspirar as galinhas com seu espírito de justiça e liderança, poderíamos disputar uma corrida em torno da casa do fazendeiro. Quem ganhar, torna-se o novo líder.
- Você jamais conseguiria ganhar de mim.
- Exatamente. Eu sei disso e você sabe disso, mas elas veriam tudo como uma competição justa em que o vencedor leva tudo e o perdedor se retira com honra. Todos ganham, entende?

E os dois galos marcaram a corrida para o dia seguinte. As galinhas se alinharam animadas ao longo da cerca para assistir o embate.

Dada a largada, o galo novo disparou e logo tomou uma dianteira. O galo velho conseguiu acompanhá-lo ombro a ombro por quase meia volta, mas quando contornavam a casa, na reta da linha de chegada, o galo novo estava já umas "duas galinhas" a frente, correndo empedernido, sorriso nos lábios, e o galo velho atrás dele, expressão esbugalhada para cima do concorrente, asas abertas, meio palmo de língua de fora. As galinhas gritavam "cocorico cocorico!". E o galo novo na frente todo animado e frondoso em sua pujança e o galo velho perseguindo-o resfolegante, os olhos vidrados na traseira do outro.

Súbito um estampido "BUUM!" e penas do galo novo voam para toda parte.

De sua varanda, sentado na cadeira de balanço e soprando desanimado o cano fumegante de seu bacamarte, o fazendeiro lamentou-se:

- Benzamedeus... já é o terceiro galo veado que eu compro esse mês...

A juventude pavoneia-se, mas são os outros que se banqueteiam. E não me venha com comentários de homofobia - se lhe ofende, vá reclamar com Esopo.

18 março 2016

Sobre Adultos que ainda são Crianças


© Alessandro Loiola


Um amigo querido me pede para conferir no Face o depoimento de uma conhecida que vem enfrentando dificuldades "por causa do lulopetismo".

- É disso que eu falo - ele alerta. - Histórias assim estão se repetindo em toda parte!

Hum... sei.

Me formei em medicina em 1997 e de lá pra cá já morei em 12 cidades diferentes - quantos presidentes passaram desde então mesmo?

Nessas décadas, ciganeei em busca de novos campos, novas oportunidades, novos melhores lugares na sombra e água fresca. Algumas vezes consegui, outras nem tanto. Fiz 4 anos de residência em cirurgia geral e hoje trabalho com PSF - nada a ver com a minha área de origem. Aprendi com Darwin no balanço do Beagle: a adaptação resiliente é o segredo da sobrevivência. Lamentar-se exaure forças e facilita a extinção.

Assumir dívidas, estabelecer seu padrão de vida em patamares escravizantes de renda, optar por vínculos trabalhistas ruins, acomodar-se e não elaborar planos alternativos, não fazer um fundo reserva para a época de vacas magras, isso tem nada a ver com prefeitos, vereadores,  deputados,  senadores, governadores ou presidentes.

Assumir a responsabilidade pelas próprias escolhas é EXATAMENTE o que esperamos dos governos - e DEVERIA ser uma filosofia íntima inegociável para absolutamente cada um de nós.

A hora em que pararmos de reproduzir no plano micro de nossas vidas os erros que apontamos no plano macro da nossa sociedade,  é NESSA hora que o milagre irá acontecer. Qualquer coisa antes disso é pura comiseração infantil.

17 março 2016

Carta para mim mesmo - e meus filhos e os filhos de meus filhos

© Alessandro Loiola



 
Espero que quando você decidir voar, voe sem medo de cair. Que você viaje, que corra e ria até perder o fôlego, que ganhe calos, que desligue a TV e gaste seus tênis caminhando pelas estradas retas e as tortuosas com o mesmo encantamento. Que quando a maré subir, você esteja lá, remando nas correntes. Que veja o céu, que encontre amigos e paz em toda parte - e principalmente dentro de si.

Espero que você ame tanto, tanto, tanto!, até doer. E que receba a dor sem sofrimento. Que esprema até o último segundo de cada minuto que o mundo lhe oferecer, e que para cada arranhão, machucado e cicatriz você adicione algo de valor aos seus dias.

Espero que você leia bons livros, que escreva um diário e curta suas músicas todas as vezes que quiser. Que você explore, confie, apaixone-se e se decepcione. Que insista, que erre muito - e acerte pelo menos na mesma quantidade -, que faça tudo intenso ao seu modo, mas apenas um pouco melhor na vez seguinte.

Espero que cada manhã seja um presente. Que você saiba que escolheu estar ali - e tem muita sorte por isso! -, e que dê tudo de si, sempre. Espero que você compreenda sua natureza, que encontre seus propósitos, e quando chegar a hora de o Sol se por no seu horizonte, espero que você erga sua taça em um brinde e descubra que tudo, absolutamente tudo, sempre valeu à pena.

Lições de Mais de Meio Século

© Alessandro Loiola
 
 
 
Os paralelos entre o momento atual e o momento pré-1964 são inevitáveis. O populismo parcialmente eficaz e parcialmente incompetente do PT avançou até este ponto de paralisia decisória do segundo mandato da presidente Dilma.
 
As boas reformas do governo Lula (sim, elas houveram!) que deveriam ter sido ampliadas com afinco, não o foram. E a política econômica, contaminada por uma combinação de inépcia e corrupção em progressão geométrica, minou o potencial de crescimento do país, a despeito do relativo bom momento mundial - a China continua puxando o mundo como um buraco negro de consumo de commodities e serviços, que pode ter arrefecido, mas ainda é surpreendentemente alto.
 
Diferentemente de 1964, não temos uma Elite Intelectual politizada - em nenhum dos lados. Os anos pós-Vargas desaguaram em uma brasilidade sem precedentes, que se manifestou desde a Bossa Nova até o Cinema Novo, mas nenhum elemento vanguardista intelectual está presente agora. Mais de uma década de governo de esquerda produziram uma massa de "inteligência" imediatista e instantaneidades amorfas. Temos passeatas e selfies, mas não temos uma agenda específica. Menos ainda um projeto.
 
Entretanto, assim como em 1964, a ideia de retirar do poder um presidente democraticamente eleito e chacinar o cenário político-partidário em busca de uma "normalidade institucional" foi ressuscitada. Diria até que esta ideia nunca morreu - ela apenas hibernou, acordando pontualmente no suicídio de Getúlio, na queda do governo Jango e com os caras-pintadas anti-Collor. Agora a ideia retorna novamente de sua tumba, tão desmemoriada quanto antes.
 
Cinquenta e dois anos depois de 1964, chegamos a mais um março tempestuoso. Será no mínimo interessante ver qual monstro brotará dele.

16 março 2016

O Homem Infinito

© Alessandro Loiola

 
 
 
 
E se houvesse um modo de viver para sempre? E se um homem um dia realmente conseguisse viver para sempre, milênios de séculos intermináveis, o que ele veria? Veria a beleza em tudo ou a tragédia em tudo? Veria o desperdício, as intenções imbecis todas - da violência à hipocrisia da paz? E ele sorriria? Ou deixaria-se soterrar em consternação pela burrice que nos permeia e preenche?

Veria ele valor no amor ou desejaria que as pessoas lhe retirassem os louvores? Identificaria algum pecado? Veria justiça no ódio? Tempero na vingança? Sentido nas vaidades? Perceberia deuses e demônios ou enxergaria as intenções como um vácuo de nadas? Quantos poentes ele levaria até cansar-se de contemplar o Sol sendo engolido detrás do horizonte? Quantas noites até achar toda aquela escuridão imensa apenas um meio giro sobre o eixo?

O Homem Infinito veria outra utilidade na humildade exceto a de proteger-nos de nossa mediocridade para quando tropeçarmos, evitando que alguém apareça e chute-nos a cabeça enquanto soluçamos prostrados de quatro? Para inspirar compaixão e misericórdia quando não formos mais fortes o suficiente e estivermos à mercê de outros poderes - pois é para isso que nos fazemos de humildes. A humildade é uma barganha de subserviência e desejo de admiração e maldições que não ousamos enunciar. Não existe humildade verdadeira na humildade que aspiramos.

O Homem Infinito veria utilidade nos governos? "Irão todos desaparecer", ele decretaria de seu asteróide errante. As guerras e seus motivos, os hinos, as tropas marchando com suas bandeiras, as opiniões polarizadas, as leis, os impostos, as estradas, os templos, a escravidão e o bem-estar social irão desaparecer. Os eleitores, os eleitos, os corruptos e os honestos (se os houve um dia), as notícias, as coroas, as pratas da casa, os acordos, as intrigas, os contratos do que é certo e do que é errado, irão todos desaparecer também. E o que sobrará, acaso sobre algo, serão histórias distantes e alguns tesouros enterrados. Do resto, nem os cães se recordarão.

Para o Homem Infinito, o que teria sabor? O que seria arte? O que seria belo e sincero? Posto que, até hoje, todas as descrições do homem eterno partiram de homens mortais que o criaram, dos conceitos às ideias, o que seria de fato próprio dele e que escapa ao nosso escrutínio?

Se houvesse um modo de vivermos para sempre, se um dia realmente conseguíssemos viver para sempre, o que veríamos para além de nós?

15 março 2016

A natureza das coisas


© Alessandro Loiola

 

Um ônibus pára todo dia de manhã na frente do meu consultório e dele descem levas de pessoas sofrendo de insatisfação, raiva, frustração, angústia, ansiedade, autocomiseração. Elas se acham diferentes, mas suas queixas são absolutamente as mesmas:

- Não consigo mais dormir direito, doutor.
- Certo.
- Sinto umas palpitações de vez em quando. E ouvi dizer que um tio-avô do vizinho do cunhado do meu primo teve angina e quase morreu. Me preocupei.
- Algo mais?
- O meu corpo. Meu corpo todo dói o tempo inteiro.
- Hum.
- A verdade é que ando sem paciência.
- Humrum.
- …E agora dei pra chorar por qualquer coisa.
- Tendi.

O que essas pessoas têm? Onde elas vivem? De onde vêm? Para onde migram? Como se reproduzem? Gostaria de ouvir a voz do Sérgio "Chapolin" com essas respostas todas no Bobo Repórter da próxima sexta-feira, mas é pouco provável que elas estejam por lá.

Os bandos civilizados navegam de médico em médico, de pronto atendimento em pronto atendimento, procurando respostas para perguntas que nunca souberam fazer, desfilando seu rol de sintomas que significam nada, mas já dizem o suficiente.

Se esses surdos fossem capazes de ouvir, eu lhes diria 3 coisas:

Primeiro, a Saúde não vem do Sistema de Saúde. Médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, farmacêuticos, dentistas, clínicas, hospitais, NENHUM destes lhe trará saúde. Sua saúde vem de coisas tão simples quanto boa alimentação, boa atividade física, bom sono, boas atitudes, boas amizades e boa sorte. Ninguém poderá fazer essas coisas para você além de você mesmo.

Profissionais da área podem lhe dar conselhos, informações e apoio, mas eu não vou ficar plantado ao lado da sua geladeira a noite toda, todas as noites, para evitar que você coma aquele brigadeiro às 3 da manhã. Eu não sou sua mãe. Ninguém é com exceção da sua mãe mesmo, coitada. E nem ela deveria ter uma obrigação imbecil dessas. E quando você aceita que remédios e exames sejam substitutos para escolhas e hábitos de vida mais saudáveis, acredite: você não está sendo teimoso ou prático, apenas menos inteligente.

Em segundo lugar: aprenda a ter medo das coisas certas. Não tenha medo da doença mais rara ou daquela que está na moda: tenha, sim, medo de procurar assistência médica. Quem nunca vai ao médico está isento de erros médicos. Se você está se sentindo bem, continue bem, continue fazendo suas boas escolhas e evite salas de espera de especialistas.

Procure seu médico quando você tiver um problema de fato ou quiser tirar uma dúvida importante. Não entre no consultório a cada seis meses exigindo um check-up completo: admita, você nem sabe pra quê serve isso. Não perca seu tempo com fantasmas. Viva sua vida e deixe de hipocondria.

Finalmente, eu diria aos surdos: COMPREENDAM A CONDIÇÃO HUMANA. E este seria o conselho mais difícil de todos. Nós somos feitos em variedades de tamanhos e formatos quase infinitos. Admita as diferenças, conheça suas limitações e exija o máximo do seu autocontrole e da sua força de vontade. Não vá na onda daquelas pessoas que são apaixonadas por um problema e querem ter sempre um sintoma pra dividir com os amigos na hora do café.

Reconheça quem você é e alcance o que você quer. As coisas são como são, mas elas também podem ser como você determinar que elas sejam.





Notícias do front

© Alessandro Loiola  

Estudos apontam:

"Ingestão de água está associada a hiponatremia fatal"
"Antibióticos aminoglicosideos causam lesões nos rins"
"Remédio para febre Paracetamol é responsável por insuficiência hepática fulminante"
"Reposição de hormônios tireoideanos causa infarto"
"Antiarritmico Digoxina desencadeia arritmia cardíaca"

E o povo se alarma em polvorosa. Valhei-me Santo Jovem Padawan de Tatooine do Norte...

Seguinte: TODO remédio é um veneno e TODO veneno tem um potencial para ser um remédio - e isso vale da farmacologia aos castigos que os pais aplicam e até para a situação política arual.

Interpretar corretamente o peso e as consequências de um estudo é tarefa braba - porque as respostas que ele encontra tendem a ser tão boas (ou ruins) quanto as perguntas que o precedem e justificam.

A ciência não é Conhecimento, mas um método de raciocínio. Metade da mídia / jornalistas não sabe lhufas de ciência. A outra metade acha que sabe, mas não entende. E as notícias do que é reto saem tortas como a estrada Taubate-Ubatuba.

Se soubesse rezar, eu rezaria para ver o dia em que nossa imprensa se tornaria enfim uma ferramenta social positivamente crítica e criativamente alienante.

Mas eu não rezo.

12 março 2016

Refletindo sobre A Arte de Pensar Claramente

© Alessandro Loiola


Um sujeito entrou em uma loja de acessórios de pesca. De repente, parou diante de uma estante e pegou uma isca de plástico brilhante que chamou sua atenção e perguntou ao atendente:

   - Me diga uma coisa: os peixes realmente fisgam esse negócio?

O atendente riu:

   - Senhor, não vendemos para os peixes.

Não preparamos iscas para o Destino. Ele simplesmente acontece. O que compramos é a ILUSÃO de que temos algum controle sobre qualquer coisa. Jogue suas iscas fora.

Qual a hora certa?

© Alessandro Loiola




No meio da correria do plantão,  alguém precisa registrar um horário na prescrição e pergunta:

- Que horas são?
- 11:10, responde uma.
- No meu relógio são 11:15, diz outra.
- No meu celular tá marcando 11:13, diz uma terceira.

Qual das 3 opções oferece a hora certa, afinal?

O Paradoxo da Escolha já foi tema de livro - tem um muito bom sob esse nome, escrito por Barry Schwartz.

O fato é que a Escolha  é o termômetro do progresso. Enxergar escolhas é um sinal quase inefável de raciocínio.

Mas existe um limite a partir do qual o excesso de possibilidades acaba com a qualidade de vida e produz insatisfação, não crescimento.

Jamais existirá uma escolha 100% perfeita,  mas você DEVE APRENDER a escolher as escolhas das quais vale a pena participar - e deixar resignadamente o resto para lá.

De Passagem

© Alessandro Loiola




Um homem muito muito rico partiu em uma viagem de auto descobrimento. Pessoas insanamente ricas mas minimamente inteligentes gostam de coisas assim. Pra falar a verdade,  você não precisa nem ser insanamente rico para apreciar algo desse naipe.

Enfim, ele traçou metodicamente sua viagem no mapa e seguiu seu plano em um país distante. Lá chegando, após poucos dias de caminhada, ficou sabendo de um eremita considerado o Homem Mais Sábio da Terra pela população local. A cabana do eremita não fugia muito do traçado original de sua viagem, então ele decidiu dar um pulo e fazer-lhe uma visita rápida.

   - Olá, disse o homem.
   - Olá, disse o eremita.
   - Você provavelmente não sabe quem eu sou, mas vim de muito longe para encontrá-lo.
   - Verdade? E quem é você?
   - Eu sou um homem insanamente rico. Tenho empresas, indústrias, iates, casas, motos, carros esportivos,  quadros caríssimos...
   - Oh, que da hora! E você os trouxe todos consigo?
   - Não mesmo. Vim até ao seu país em uma aventura, mas estou por aqui só de passagem.
   - Hum...

"Só de passagem". Isso resumiria a viagem.

Economize seu tempo: Não se apegue demais às coisas. Veja o que você tem como algo que lhe foi transferido provisoriamente pelo "universo" - sabendo que tudo pode ser tomado de você a qualquer momento. E será, um dia.

"Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, ririamos sem dúvida de nos julgarmos vivos". Faça sua mochila leve. Ame. Viaje o mais longe. Sorria. E viva sempre o máximo desse jeito.

10 março 2016

Carta para a Mulher de Olhos Fechados


© Alessandro Loiola
 


Vejo a mulher de olhos fechados e não me contenho. Digo para ela: sinceramente, gostaria que você percebesse como tudo é raro e precioso, e como as forças dentro de nós rugem com fomes e sedes. De como existe nenhuma razão em coisa alguma, apenas as experiências que vivemos, e nenhum destino para onde estamos indo, ainda que estejamos indo mais depressa a cada dia.
Gostaria que você visse pelos meus olhos e tivesse a voracidade do meu espírito. Gostaria de transpor isso e fazê-la livre das amarras que a seguram antes dos instintos. Você deveria abrir os olhos e ver como o tempo se desfaz, como tudo é fútil exceto os prazeres e os aprendizados.
Você deveria alegrar-se pela alegria sem motivo e tagarelar risadas soltas o dia inteiro. E fazer planos encantados, transgredir-se despida de expectativas, abandonada de conceitos, ser quem quer que seja que não essa pessoa que se queixa da coluna, dos saltos, das cólicas, da enxaqueca, tão resumida em cansaços, sempre e sempre esgotada por tantas responsabilidades e regras igualmente transitórias.
Não, você deveria ir além. Bem além. Deveria abrir os olhos e o coração, florescer apaixonada para a vida em uma agitação de chamas e volúpia, em ganância pelas emoções espalhadas no mundo, e desejar juntar essas emoções dentro de si em uma coleção de júbilos para onde pudesse voltar-se a cada segundo, esfuziante por haver descoberto tanto, tanto.
Você deveria ser quem você nasceu para ser. Ser a imensidão que nascemos e então esquecemos. Porque eu lembrei, você também poderia. Deixar enfeitiçar-se pela música, nenhum maestro acima das estrelas, nenhum condutor abaixo delas, nenhuma busca nessa descoberta de espontaneidades livres e selvagens.
Você deveria abrir os olhos e ver tudo isso. Mas você não abre. Por que não?

Para quê servem os Relacionamentos?

© Alessandro Loiola


 
Responda com a primeira frase que lhe vier à cabeça: para quê os relacionamentos servem, afinal? Para perpetuação da espécie? E no caso de relacionamentos sem a intenção de reproduzir? O que há em nós que nos faz gravitar na direção desse evento, insistindo algumas vezes uma vez atrás da outra, as esperanças todas em frangalhos?
 
Alguns dizem que talvez seja a preguiça ou a incapacidade de sentirmo-nos completos sozinhos que nos faça procurar no outro a tampa da laranja que nos falta. Ou a metade da laranja. Ou quiçá a laranja inteira. Ou um abacate - deixo você escolher a fruta de sua preferência, se quiser.

A despeito de laranjas e abacates, a resposta definitiva para essa questão pode não estar na seção de hortifruti, mas nas aulas de embriologia: não nascemos como uma pessoa completa. Somos concebidos parasiticamente como uma pessoa dentro de outra pessoa. A anfimixia nos funde a partir de dois conjuntos de 23 cromossomos e logo nos tornamos dois corações que passam a bater assincrônicos porém juntos.
 
A gestação é isso: uma simbiose de duas almas um só espaço. Ou mais almas, dependendo da animação dos óvulos, dos espermatozóides e dos genes.

O término da gravidez nos divide e pelo resto da vida buscamos um útero que nos complete enfim, mas nenhum útero será como aquele útero original, confortável, protetor, sereno. E a busca que nasce conosco está fadada ao desespero ou à infelicidade, a menos que lhe desvendemos a natureza - e sua natureza é o retorno tranquilo ao par, aos dois seres coabitando um no outro, pagando o roubo de nutrientes com promessas de encontro.

Um relacionamento é a quitanda onde fazemos nosso escambo de expectativas tendo a Paciência como placenta e a Tolerância como cordão umbilical. Enquanto negociamos intenções, o preço e o bônus do amor acumulam-se e nos aguardam na vida que se segue a ele.
 
Qual seria a MINHA resposta sobre "para quê servem os relacionamentos"? Eu lhe diria que a construção do romance é esse trabalho de parto onde sabemos, de alguma forma instintivamente sabemos, que apaixonar-se de verdade é nascer de novo para si e para o outro. Simples e leve assim.